Nascido em novembro de 1937, no município de Capela, no Estado de Alagoas, Marcos Vilela Magalhães Monteiro saiu da casa onde foi criado pelas tias e pela avó rumo a São Paulo, a bordo de um pau de arara. Contava então 15 anos. A ordem era sobreviver e ajudar no sustento da família, que havia chegado na capital paulista muito antes dele. Setenta anos depois, o doutor em Agronomia, com Ênfase em Tecnologia de Aplicação, subiu ao palco montado na Arena Clóvis Gularte Candiota, no Congresso da Aviação Agrícola do Brasil (Congresso AvAg – matéria completa nas páginas 40 a 47) 2022 para receber a Medalha Mérito Aviação Agrícola. Foi o reconhecimento do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) a uma trajetória de sucesso, que começou pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). Primeiro como aluno, depois professor. E, dali, para o mundo.
Perguntado sobre o que sentia ao receber a mais alta honraria do setor, não escondeu a alegria: “É uma emoção indescritível. Vim de família pobre, estudei por mim mesmo e cheguei a altos degraus”. A distinção do setor aeroagrícola ele coloca ao lado da Medalha Mérito Santos Dumont, entregue a ele em 1981 pelo Ministério da Aeronáutica, por sua contribuição à aviação.
Entusiasmado com o reconhecimento do seu trabalho, Marcos Vilela mantém, aos 84 anos, a curiosidade de um adolescente frente às inúmeras possibilidades de avanço do setor aeroagrícola. E afirma que não poupa recursos em pesquisa: “não penso duas vezes em arriscar um teste”. Idealista, em constante busca do aprimoramento da tecnologia de aplicação, seu nome está ligado à evolução do setor aeroagrícola brasileiro.
Tanto que em 60 anos de atividades profissionais, introduziu equipamentos e tecnologias importantes para a defesa fitossanitária, como os sistemas Ultrabaixo Volume, Baixo Volume Oleoso e, mais recente, o Atrai e Mata. Também trouxe para o Brasil o atomizador rotativo, sistemas eletrostáticos, sensores de inversão térmica, entre outros. Adepto da bioaeronáutica, hoje desenvolve tecnologias de aplicação de produtos biológicos, botânicos e naturais para combater pragas e vetores.
Além de grande conhecedor da aviação agrícola, Vilela tem muita história para contar e, no meio do Congresso AvAg 2022 (onde foi homenageado), em uma das pausas dos encontros com parceiros de longa data, parou para falar sobre sua vida e o muito que conhece da história do setor que completou 75 anos de Brasil em 19 de agosto. Confessou desatinos, como o pouso noturno com um avião que operava sem instrumentos, e recontou a história de Ada Rogato, primeira mulher a pilotar um avião agrícola no Brasil, trazendo à luz a falta de conhecimento técnico do pessoal de solo, que levou ao acidente que ela sofreu em 1948, durante aplicação em um cafezal – do qual se recuperou e seguiu defendendo a ferramenta. Durante a entrevista, Vilela também mostrou, orgulhoso, a carteira de número 001 de Coordenador Técnico em Aviação Agrícola – que carrega por onde vai, com muito carinho.
A sua família era ligada à agricultura?
Marcos Vilela – Eu nasci em Capela (Alagoas), no dia 18 de novembro de 1937. O meu pai era motorista de caminhão e mecânico e a mãe, de prendas domésticas. Todos tinham ideia de vir para São Paulo. Não havia trabalho, não se tinha comida, era uma situação de miséria geral no Estado. Então, em 1952, eu cheguei em São Paulo em um pau de arara (caminhão adaptado para o transporte de pessoas com assentos de madeira na caçamba), que vinha batendo de Alagoas até São Paulo durante 12 a 15 dias, dependendo da chuva. Em São Paulo, eu trabalhei e me eduquei.
Como foi que chegou na Agronomia? O senhor já tinha noção do trabalho no campo?
Marcos Vilela – Nada, nada, nada. Para sobreviver eu trabalhava em tudo. Uma das coisas que fazia era vender ovo na Feira de Santo Amaro, com um japonês que me convidou para trabalhar com ele na sua granja. E eu comecei a gostar da agricultura. Ele me disse: “– olha, tem uma faculdade que ensina agricultura lá em Piracicaba.” Eu falei que não poderia fazer o vestibular porque não tinha condições. Então, ele colocou o dinheiro da passagem no meu bolso sem eu ver. Quando eu cheguei em casa, estava lá o dinheiro que eu precisava para fazer a viagem. Daí, eu fui e passei em primeiro lugar para Agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). Na época, eu tinha 19 anos. Me formei em 1960, mas brevetei como piloto em 1958.
Por que resolveu fazer o curso de piloto?
Marcos Vilela – Para não fazer o CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, no serviço militar obrigatório), porque eu perderia a minha educação. Aí apareceu a oportunidade de tirar o brevê. Eu ganhei uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a primeira de mecânica dada para um aluno de Piracicaba. Como eu era o primeiro aluno de mecânica, recebi a bolsa. O CNPq atrasou e pagou tudo em uma única vez. Eu não sabia o que fazer com aquele dinheiro todo. Então, resolvi fazer o brevê para escapar do CPOR. O brevê custava x, eu tinha meio x, fui lá no aeroclube: – olha, está aqui meio x à vista, me dá o curso? E eles deram.
Foi ousado…
Marcos Vilela – Eu sou muito ousado. Muito ousado, graças a Deus.
O senhor tinha algum sonho de menino?
Marcos Vilela – Lá em Alagoas, nossa vida era muito primitiva. A educação era boa do ponto de vista técnico, mas a social era terrível, era muito ruim. São Paulo já tinha influência da colonização europeia. Quando vim para São Paulo, eu comecei a dar aula de física e matemática para alemães, japoneses, judeus, todos os meus colegas de turma. Eles não conseguiam passar de ano sem aquele apoio. Com isso, eu consegui fazer o curso, me graduei, entrei para a Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. Nessa época, eu já era piloto, já voava de vez em quando.
Quando o senhor se apaixonou pela aviação agrícola?
Marcos Vilela – Era a primeira epidemia do mal-de-sigatoka na banana no Brasil (o nome é em alusão ao Vale de Sigatoka, nas Ilhas Fiji, onde a doença foi reconhecida em 1912). Eu me formei e fui direto para Juquiá, Litoral de São Paulo, para combater a praga. Foi aí que me apaixonei pela tecnologia de aplicação. Daí para a frente foi mais fácil, porque eu era muito próximo do professor de mecânica, o senhor Hugo de Almeida Leme (professor catedrático em 1944 e diretor em 1960. Em 16 de junho de 1964 foi nomeado ministro da Agricultura, cargo que exerceu até 19 de novembro de 1965). No segundo ano no litoral, nós resolvemos o problema da sigatoka, e ele me convidou para ser professor da Luiz de Queiroz em Piracicaba.
O senhor já era doutor na época?
Marcos Vilela – Eu doutorei em 1969, pela Universidade de São Paulo em Agronomia, com ênfase em Tecnologia de Aplicação.
O senhor já era professor universitário nessa época?
Marcos Vilela – Sim. Eu era professor universitário, mas criei, a pedido do Ministério da Agricultura, os cursos de piloto agrícola e técnico do Cavag (Curso de Aviação Agrícola) na Fazenda Ipanema, para formar mão de obra para a aviação agrícola.
Conte como foi essa parte da história.
Marcos Vilela – É o seguinte: eu era diretor-geral do Ministério da Agricultura em 1965, quando o governo decidiu promover a agricultura brasileira. Mas não existe agricultura desenvolvida sem aviação agrícola desenvolvida. Eu atuava no Departamento de Defesa e Inspeção, que foi chamado para desenvolver a aviação agrícola. A primeira coisa a fazer era o preparo de pessoal. A Fazenda Ipanema já tinha hangar, pista, tudo. Então, nós nos juntamos com o Ministério da Aeronáutica. O major Marialdo Rodrigues Moreira (depois tenente-coronel) assumiu no Ministério da Agricultura a Divisão de Aviação Agrícola (Diav) e começamos o preparo de pilotos, agrônomos e técnicos. Eu juntei os técnicos necessários para dar o primeiro curso de piloto, o primeiro curso de agrônomos coordenadores e de executores, que persiste até hoje. Só no nosso século, o século 21, eu já treinei 4 mil técnicos agrícolas. O volume é muito grande e esses técnicos estão pelo Brasil desenvolvendo a agricultura brasileira através da aviação agrícola brasileira. Hoje, a segunda no mundo.
*O então major Marialdo Rodrigues Moreira assumiu a Divisão de Aviação Agrícola (Diav) do Ministério da Agricultura em 1966 e foi responsável por organizar e impulsionar o setor aeroagrícola brasileiro. Também coube a ele a criação dos Cursos de Piloto Agrícola (na época, Curso de Aviação agrícola, o Cavag – sigla que permanece até hoje) e de Coordenadores em Aviação Agrícola (CCAA). Falecido no ano de 2007, ele foi homenageado postumamente com a Medalha Mérito Aviação Agrícola de número 5.
Onde o senhor fez o curso de piloto agrícola?
Marcos Vilela – No Cavag. Eu já era brevetado e já tinha voado agrícola. Minha vida é meteórica. Aqui eu tenho uma coisa boa (saca da carteira a credencial de Coordenador Técnico em Aviação Agrícola). Eu guardo isso porque tenho orgulho de ser piloto. Aqui diz: “Ministério da Agricultura – Escritório da Produção Vegetal da Equipe técnica da Aviação Agrícola. Marcos Vilela de Magalhães Monteiro, 2 de 8 (agosto) de (19)69. Número de ordem: 001”. Esse foi o primeiro curso que foi dado. O major Marialdo Rodrigues Moreira, que era o diretor da Divisão de Aviação Agrícola e institucionalizou o Curso de Piloto Agrícola (Cavag) e de Coordenadores em Aviação Agrícola (CCAA), falou: “– Doutor, como fica isso? O senhor deu um curso, nós estamos dando carteira e diploma para todos os aprovados, e o senhor não pode assinar como coordenador. Por isso, eu decidi dar a você a carteira 001”. Eu guardo isso com amor.
Você tem outras histórias fascinantes, como a do nascimento do Ipanema.
Marcos Vilela – O nome do avião Ipanema veio da Fazenda Ipanema. Ele foi gerado mentalmente. Como ele foi gerado mentalmente? Fizemos o encerramento do primeiro curso de pilotos. Todo mundo feliz, o avião era o (Piper) Pawnee, importado dos Estados Unidos. Nós tínhamos três aviões na Fazenda Ipanema. Marialdo era um homem de muita visão: “– Como vamos fazer quando esses aviões precisarem voar para a agricultura, que avião nós vamos voar?” Eu falei: “– Tem que importar o Pawnee”. Ele completou: “– Não sei. Nós temos que fazer um avião agrícola, porque proibiram a importação de aviões de maneira geral.”
Nesse período já tinha avião agrícola fabricado no Brasil?
Marcos Vilela – Não tinha ainda o agrícola, mas proibiram. Colocaram uma taxa de importação muito alta. Ficava impossível importar um avião. Aí ficamos de ir ao CTA (Centro Tecnológico Aeroespacial de São José dos Campos) falar com o tenente-brigadeiro Paulo Víctor (*), diretor do CTA. O Ministério da Agricultura tinha um avião executivo que eu pilotava, era um Bonanza (fabricado pela norte-americana Beechcraft), Fox November Whiskey (FNW, na indicação das letras finais do prefixo pela fonia internacional do alfabeto). Lembro bem desse prefixo porque eu voei muito com esse avião. O major Marialdo era muito sociável, conversava bastante, e o avião FNW não voava com instrumentos. Não podia voar depois do pôr do sol. Eu alertava o major, na época, para ir a São José dos Campos naquela tarde conforme havíamos combinado com o tenente-brigadeiro. O Marialdo era muito calmo e dizia: “Não se preocupa. Nós vamos chegar lá a tempo”.
(*) O tenente-brigadeiro Paulo Víctor da Silva, que dirigiu o Centro Técnico Aeroespacial (CTA) de 1966 a 1973, hoje Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial, é considerado um dos fundadores da Embraer.
E vocês chegaram ainda de tarde?
Marcos Vilela – Na hora de subir no avião já eram quase 7 horas da noite, 6h40, estava longe da legalidade. Marialdo falou: “– O senhor vai no comando.” Eu respondi: “– não, o senhor é major, e a prioridade em aviação é do mais qualificado. O senhor vai no comando.” Marialdo falou: “– Eu, não. Lá vão nos prender. Vão prender o comandante. Se eu for preso, você não pode me soltar. Mas se você for preso, eu te solto.” E dito e feito. Decolamos, pousamos em São José dos Campos e já veio um jipe com soldados. Era base militar, e eu pousei à revelia e tudo.
O senhor chegou a ser preso?
Marcos Vilela – Fui preso direto. Era um tenente que estava lá. Ele liberou o major Marialdo que estava com traje civil. E eu fiquei com o oficial me desbancando. “– Como o senhor pousa com um avião federal à noite, sem instrumentos, sem permissão de voo noturno? Vou caçar a sua carteira.” Eu afirmei que estava em uma missão especial. O tenente falava: “– Não há missão especial nenhuma.” Eu respondi: “– Eu sei que era ilegal, mas infelizmente eu cometi esse desatino. O senhor faz o que a legislação manda.” A situação foi resolvida posteriormente pelo major Marialdo. Após a minha liberação foi realizada a reunião do major Marialdo com o tenente-brigadeiro Paulo Víctor e com representantes da Embraer (*), na qual ficou decidido o desenvolvimento de um avião agrícola brasileiro que veio a receber o nome de Ipanema.
*A Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. (Embraer) tem sua origem do projeto de implementação da indústria aeronáutica no Brasil. Gerada dentro do Centro Técnico Aeroespacial, com o desenvolvimento do primeiro avião chamado de Bandeirante. A produção do avião agrícola, o Ipanema, começou em 1972. O avião a pistão foi projetado por engenheiros do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e testado na Fazenda Ipanema, em Sorocaba/SP. Seu primeiro voo ocorreu em 1970.
Além do tenente-coronel Marialdo Rodrigues, o senhor conheceu muitos outros personagens importantes da aviação agrícola. Chegou a ter contato com os pioneiros Clóvis Gularte Candiota (patrono do setor) e Ada Rogato?
Marcos Vilela – Eu não tive o prazer de conhecer o Candiota. A Ada Rogato eu conheci. Ela viveu uma situação traumática. No período que ela fez seu primeiro voo agrícola, ninguém sabia nada de aviação agrícola, nem o indivíduo que abasteceu o avião. Eles estavam carregando o avião – um modelo CAP-4 Paulistinha – e colocaram vários sacos de pó. O cidadão jogou o saco no hopper e depois o pó em cima. Resultado, ela mergulhou, achando que iria sair o pó e o avião ficaria mais leve. E o pó não saia (o saco entupiu o sistema de pulverização) e o avião não subia. Ela caiu (*). Ela tinha uma cicatriz no rosto desse acidente. Ela estava sem cinto dorsal porque na época não era obrigatório.
Ela estava usando algum tipo de cinto?
Marcos Vilela – O cinto abdominal não impede de você bater a cara no painel. Ela estava sem capacete. Hoje, não se pode voar agrícola sem capacete. Não foi imprudência, foi reflexo do desconhecimento da tecnologia por parte da equipe de terra. Eu não mantive contato com ela, mas a admirava muito como piloto. Ela foi a primeira brasileira (entre homens e mulheres) a transpor os Andes em direção ao Chile pilotando em avião pequeno. Um feito histórico da vida dela. Uma região dificílima de voar. Ela foi muito corajosa e muito competente.
*Ada Rogato foi a primeira mulher a pilotar uma aeronave agrícola no Brasil e a segunda no mundo. Ela fez seu primeiro voo para combater a broca do café com um CPA-4 Paulistinha de 65hp em 7 de fevereiro de 1948. No quinto dia de trabalho, contava-se que o aparelho havia se chocado contra um cabo telefônico e caiu na plantação. Ela sofreu várias fraturas, mas se recuperou totalmente e, ainda no hospital, permaneceu defendendo a importância da atividade aeroagrícola.
Durante o Congresso da Aviação Agrícola 2022, o seu primeiro avião – um Piper PA-18A, fabricado na década de 1950 – foi uma das atrações, chamado carinhosamente de Arnaldo. Como o senhor chegou até o Arnaldo?
Marcos Vilela – Eu estava inquieto com a dinâmica das pesquisas da faculdade na minha área. Eu fui o primeiro professor que pediu demissão da Luiz de Queiroz. Aliás, acho que fui o único. Eu dava aula de mecânica e máquinas agrícolas, na área da tecnologia de aplicação. Comecei a voar em 1962 e fui até 1967, eu voava no PA-18, da Piper, e no Paulistinha CAP-4. O PA-18 é o Arnaldo. O nome foi dado por causa do prefixo dele, (PT-) ARN.
O que dá para dizer sobre o Arnaldo?
Marcos Vilela – Só se pode falar coisas boas do Arnaldo e da sua categoria. É um avião excepcional. Durante o maior problema que o Brasil teve na cafeicultura, a broca do café, o governo importou algumas dezenas desses aviões e distribuiu para aplicação nos cafezais. Foi isso que salvou a cafeicultura brasileira. O PA-18 foi produzido a partir de 1945, período pós-guerra, e é usado principalmente para treinamento. É o maior treinador até hoje desenvolvido no mundo em qualidade e quantidade. E depois ele foi adequado para a aviação agrícola pelas qualidades que ele tem de manobrabilidade, de flutuação, pouso curto, decolagem curta e tal.
Nessa época que o senhor atuou como piloto agrícola, o senhor tinha uma empresa?
Marcos Vilela – Eu voava e tinha a empresa. Eu nunca tive espírito comercial. Por isso, eu não consegui chegar aonde os outros chegaram. Eu só aplicava em condições absolutamente corretas. Eu tinha um padrão técnico muito elevado. Eu tive outras empresas depois. Atualmente, estou desenvolvendo as tecnologias de aplicação de produtos biológicos, botânicos e naturais absolutamente seguros para o homem e animais domésticos. A minha ciência hoje é a bioaeronáutica, que estuda o uso do avião agrícola nos recursos da humanidade, combate a incêndios, às pragas e doenças nas lavouras, a vetores de epidemias humanas e à poluição.
O que o senhor está fazendo agora?
Marcos Vilela – Hoje eu sou parceiro de uma indústria de inseticida biológico para estudar tecnologia de aplicação desses insumos. Agora nós estamos testando o sistema Atrai e Mata. Nós jogamos uma mistura de melaço, pólen, flores, um atrativo para os insetos, e lá dentro jogamos o produto biológico, mas a 1%, 2%.
Quando o senhor deixou de ser professor na Esalq, a aviação agrícola já existia dentro da universidade?
Marcos Vilela – A aviação agrícola não existia nem na universidade nem fora da universidade. Havia alguns poucos aviões pulverizando. A aviação agrícola era muito incipiente. Aí aconteceu de os americanos lançarem um sistema novo – ao invés de usarem 50, 60 litros de calda por hectare, aplicavam um litro por hectare. Então, apareceu nos Estados Unidos o sistema de ultrabaixo volume. Aí, eu saí da faculdade para implantar no Brasil o sistema de ultrabaixo volume. No dia 12 de janeiro de 1956, na Fazenda Água Fria em Guará, no Estado de São Paulo, foi feita a primeira aplicação a 1 litro por hectare no combate a pragas do algodoeiro. E de lá para cá, eu nunca mais deixei de trabalhar em sistemas avançados de tecnologia de aplicação.
O senhor é reconhecido por ter introduzido tecnologias importantes para a defesa fitossanitária. Como foi essa trajetória?
Marcos Vilela – Vamos preencher esse hiato aí? Mais tarde eu fui convidado pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC) para gerenciar o projeto de controle da ferrugem do cafeeiro. Aí estamos falando de meados da década de 1970. Nós desenvolvemos aplicações aéreas no controle de cafezais com aplicações oleosas a 10 litros por hectare com eficiência. Em 1989, eu fui aos Estados Unidos desenvolver um avião agrícola pequeno com capacidade de 200 hps com carga de 500 litros. Esse projeto da Thorp Aero não se desenvolveu porque a firma faliu. Depois, de 1994 a 1997, eu fui diretor de marketing para a América Latina da McDonnell Douglas Helicopters, a maior empresa de helicópteros do mundo. Daí retornei ao Brasil em 1998 e voltei a trabalhar com aviação agrícola no Mato Grosso, que estava expandindo as culturas de soja, algodão e milho de uma forma muito rápida. Em 2000, com a entrada da ferrugem da soja, que era a terceira grande epidemia que eu enfrentei, nós desenvolvemos o sistema BVO, baixo volume oleoso, com aplicações aéreas a 10 litros por hectares e terrestre a 20 litros por hectare. Do período de 2000 a 2022, nós treinamos 4 mil técnicos e agrônomos em aviação agrícola. Eu havia voltado ao Brasil em 1998 e comecei a dar cursos em 1999, quando criamos o CBB Treinamentos, o Centro Brasileiro de Bioaeronáutica.
E o Sistema Atrai e Mata, quando foi criado?
Marcos Vilela – Em 2021, desenvolvemos a tecnologia de aplicação que chamamos Sistema Atrai e Mata, que aplica meio litro por hectare em faixas de 100 metros com 1% apenas do inseticida usado atualmente. Os sistemas UBV (Ultrabaixo Volume), BVO (Baixo Volume Oleoso) e SAM (Sistema Atrai e Mata) constituem os sistemas avançados de tecnologia de aplicação.
O Alan McCracken, que recebeu a Medalha do Mérito da Aviação Agrícola neste ano junto com o senhor, também trabalha com sistemas de baixo e ultrabaixo volumes. Vocês comungam do mesmo aprendizado?
Marcos Vilela – Fui colega de turma do Alan McCracken na Inglaterra. Fizemos curso juntos. Nós temos as mesmas linhas que são dos professores de Cranfield College of Aeronautics, que agora virou universidade e onde se concentram os maiores técnicos do mundo em aplicação aérea.
O senhor também foi responsável pela entrada do atomizador rotativo no Brasil?
Marcos Vilela – Eu fiz o melhor do mundo. O pessoal veio me cumprimentar agora, dizendo que usaram 15 anos o atomizador rotativo que eu produzi. Eu desenvolvi o atomizador rotativo de disco para aplicações nos sistemas avançados de UBV e BVO. Ao todo foram produzidas, entre 2004 e 2020, 10 mil unidades e exportadas para cinco países. Os primeiros ainda estão bons.
E o seu trabalho foi reconhecido. O senhor recebeu a Medalha Mérito Santos-Dumont…
Marcos Vilela – Eu recebi essa comenda que eu honro muito, como essa que eu acabei de receber (referindo a Medalha Mérito Aviação Agrícola entregue pelo Sindag). Eu sou comendador do Ministério da Aeronáutica. Eu recebi a Medalha Mérito Santos-Dumont em 1981 por serviços prestados à aviação brasileira por decreto do ministro da Aeronáutica (na época, tenente-brigadeiro Délio Jardim de Mattos).
Como foi para o senhor receber essa homenagem do Sindag?
Marcos Vilela – Foi uma honra muito grande receber o reconhecimento da comunidade da aviação agrícola. É a minha comunidade. E entendo que esse é um momento que nós todos temos que lutar pelo progresso, desenvolvimento e sustentabilidade da aviação agrícola. Se nós não conseguirmos isso, o Brasil não chega lá. Nós temos que garantir a sustentabilidade da aviação agrícola em termos de proteção ambiental, segurança, aumento de produtividade, temos capítulos que ainda precisam ser declinados como é o caso do controle de vetores de doenças humanas, o controle da dengue, da chikungunya, do vírus da Zica e agora da febre amarela urbana que está migrando e vai precisar do tratamento aéreo nas cidades. Não há alternativa. Nós estudamos por mais de 50 anos o uso do avião no controle de vetores.
Qual é o principal desafio da aviação agrícola hoje?
Marcos Vilela – São vários. Eu acho que isso passa por um triângulo. Numa ponta, nós temos a formação de recursos humanos. Levantamento realizado mostra que poucas faculdades de Agronomia oferecem a disciplina de Tecnologia de Aplicação e nem todas ensinam como aplicar com avião agrícola. A outra ponta vai ser o esprit de corps, como dizem os franceses. O espírito de coletividade do grupo. O grupo precisa lutar unido pela aviação agrícola. Isso é uma coisa extremamente importante. E o terceiro pilar acho que é a divulgação. A comunicação não é feita. Nós temos mais de 500 faculdades de agronomia no Brasil, e a maioria nem sabe dos trabalhos da aviação agrícola.
O fato de a aviação agrícola não ter um lugar de destaque dentro da universidade, isso não contribui para dar voz aos antagonistas do setor?
Marcos Vilela – É justamente na divulgação que nós vamos ganhar essa briga. Eu já fiz dois trabalhos de certo peso no Oeste Baiano para apresentação na Câmara dos Deputados da Bahia. Alguns políticos, quando se juntam, constroem uma narrativa e entram com o pedido de cancelamento da aviação agrícola. A digitadora só copia das outras anteriores: “Centenas de mortes são causadas anualmente no Oeste Baiano…”. Quando eu estava preparando o relatório, me lembrei de um trabalho que li sobre pulverizações aéreas desenvolvido pela Universidade de Davis, na Califórnia. A médica-chefe da parte de epidemiologia da instituição de ensino fez um estudo durante três anos em centenas de hospitais dos municípios da região de Sacramento, onde ocorriam aplicações com avião agrícola, para saber quantas pessoas acessaram as emergências ou foram internadas devido à intoxicação por agroquímicos. O resultado foi zero. Esse trabalho me inspirou a pedir à Abapa (Associação Baiana de Produtores de Algodão) para visitar todos os hospitais do Oeste Baiano – Barreiras, Luiz Eduardo Magalhães – e pedir por escrito para os diretores das instituições o número de pessoas diagnosticadas com intoxicação devido a aplicações aéreas nos últimos cinco anos. E eles fizeram. Onde estão as centenas e centenas de mortes causadas pela aviação agrícola? Não havia.
Por que a aviação agrícola fica em segundo plano na academia?
Marcos Vilela – Porque é difícil e não dá o recurso que aparenta dar. Todo mundo entende que eu sou muito bem de vida, que eu sou milionário, mas eu tenho as dificuldades normais de um profissional. Talvez por uma característica pessoal, eu invisto muito em pesquisa. Não penso duas vezes em arriscar um teste e gastar um dinheiro. Agora mesmo, estou querendo comprar uma motocicleta elétrica. Eu acho que o melhor aplicador fora o avião em lavouras vai ser a motocicleta elétrica.
E os drones?
Marcos Vilela – Os drones têm a sessão deles. Cada um tem seu lugar. Para enfrentar 50 milhões de hectares de lavoura, nós temos que ter todo mundo de braço dado. Onde o avião não pode entrar por conta do tamanho da área, entra o drone. Em viticultura não tem sentido você utilizar o avião, deve usar o drone. O drone tem seu campo de atuação. Eu agora acabei de achar mais um mercado para o drone que é o monitoramento de pragas em cima das lavouras. O psilídio vai acabar com a citricultura brasileira pela transmissão da bactéria que causa o greening (considerada a pior doença da citricultura da atualidade). O sistema de monitoramento é jogar uma plaquinha com cola amarela sobre o pomar. O inseto passa por cima do laranjal diariamente vindo de qualquer quadrante que tenha laranja e não tem conhecimento da placa amarela. Eu estou fazendo uma armadilha para pendurar embaixo do drone. Um coletor, que será analisado a cada quilômetro voado para verificar se tem psilídio na área.