Depois de mais de 70 anos sem a incidência em grande escala de uma praga de gafanhotos no Sul do Brasil, uma nuvem de insetos próximo à fronteira gaúcha com a Argentina colocou em alerta, no final de junho, autoridades, produtores rurais e empresas de aviação agrícola no Estado. A luz vermelha no lado brasileiro acendeu quando os insetos, originados quase mil quilômetros ao norte, já em território paraguaio, chegaram à província argentina de Corrientes. Já no dia 23 e 24 de junho, intensificaram-se as conversas entre a ministra da Agricultura brasileira, Tereza Cristina, o secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, Covatti Filho, envolvendo também o Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) e outras entidades do agro.
“Ainda no dia 23, havíamos enviado à ministra Tereza Cristina e ao secretário Covatti Filho ofícios colocando o setor aeroagrícola à disposição para o uso de aviões contra a praga, logo que ela entrasse no Estado”, ressalta o presidente do Sindag, Thiago Magalhães Silva – que atualmente também preside o Comitê Mercosul e Latino-Americano de Aviação Agrícola. A discussão em nível governamental envolveu ainda o deputado federal Jerônimo Goergen (PP/RS) e o senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP).
A nuvem que entrou em Corrientes teria cerca de 10 quilômetros de extensão por três de largura, com mais de 400 milhões de gafanhotos. Insetos suficientes para dizimar lavouras inteiras em apenas um dia, onde quer que pousassem. A título de comparação, uma nuvem de apenas um quilômetro quadrado consumiria, em uma pastagem, o mesmo que 2 mil vacas em um dia. Em uma lavoura, o ataque equivale ao consumo de 35 mil pessoas.
O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) agiu rápido e, em 25 de junho, publicou a Portaria nº 201/20. O documento declara emergência fitossanitária pelo risco da invasão de gafanhotos em áreas de produção agrícola do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A medida vale por um ano e, além de permitir ações emergenciais, impulsionou a elaboração de um plano permanente de ação contra a praga.
Mais de 50 aviões prontos na fronteira
No dia 27 de junho, o presidente Thiago Magalhães e o diretor-executivo do Sindag, Gabriel Colle, tiveram uma videoconferência com empresas aeroagrícolas de Uruguaiana, na fronteira oeste gaúcha. O objetivo foi repassar com os empresários a quantidade de aeronaves disponíveis imediatamente para uma ação contra gafanhotos, caso a nuvem sobre a Argentina se desviasse para o território brasileiro.
O encontro, via web, ocorreu horas depois em uma operação da aviação agrícola argentina contra a nuvem de insetos, na região de Curuzú Cuatiá, na província de Corrientes – a 140 quilômetros da fronteira (veja na página 22). “Iniciamos uma contagem tendo em vista que, sendo entressafra de algumas lavouras, é comum os empresários aproveitarem para a manutenção periódica das aeronaves”, comenta Magalhães. Além dos 10 aviões em condições de voo em Uruguaiana, a contagem abrangeu também operadores da fronteira sul, com o Uruguai.
No total, eram mais de 50 aviões em condições para ações imediatas junto aos vizinhos do Mercosul. Lembrando que o Rio Grande do Sul tem a segunda maior frota aeroagrícola do país, com 426 aeronaves em todo o seu território.
Técnicos argentinos no encalço da nuvem
Desde o ingresso da nuvem de gafanhotos na província de Corrientes, em junho, o Serviço Nacional de Sanidade e Qualidade Agroalimentar da Argentina (Senasa), do Ministério da Agricultura argentino, vinha em seu encalço esperando o momento pra que ela assentasse em um ponto onde pudesse ser mapeada. Isso para que se tivesse coordenadas que permitisse uma aplicação de inseticida, por equipe a pé ou, de preferência, por avião agrícola.
A oportunidade surgiu no dia 26 de junho, quando uma operação aérea eliminou cerca de 15% dos insetos. Eles haviam pousado para passar a noite em uma área de 70 hectares no interior do município de Curuzú Quatiá. Dali eles foram perseguidos até a região norte do município de Sauce, onde outra aplicação aérea eliminou mais 15% da nuvem, estacionada em uma área de 115 hectares.
Conforme o representante local das Confederações Rurais Argentinas (CRA) Martin Rapetti, a aplicação foi considerada satisfatória devido às condições da área: a vegetação densa em alguns pontos protegeu os gafanhotos. A partir daí, até o fechamento desta edição, os técnicos do Senasa seguiam perseguindo a nuvem. Devido ao frio, os insetos passaram a percorrer distâncias curtas, mas pousavam em áreas próximas a banhados ou onde só é possível chegar a cavalo, o que dificultou a aproximação por terra.
No lado brasileiro, seguia o alerta, mas, segundo o fiscal agropecuário Juliano Ritter, da Secretaria de Agricultura gaúcha, ao menos nas próximas semanas o frio estaria pouco convidativo para os gafanhotos. Encarregado do monitoramento contra a nuvem na fronteira do Estado, Ritter se tornou uma das principais referências para os produtores em uma faixa de 300 quilômetros.
Sindag teve encontros com parceiros do Mercosul
Paralelamente às articulações no Brasil, o Sindag buscou informações sobre a crise dos gafanhotos junto à Federação Argentina de Câmaras Agroaéreas (Fearca) e ambas tiveram depois uma videoconferência com a terceira entidade coirmã da região: a Associação Nacional de Empresas Aeroagrícolas Privadas do Uruguai (Anepa). A partir daí, as três entidades promoveram um segundo encontro no dia 2 de julho, com a participação também de autoridades governamentais dos três países.
O encontro contou ainda com representantes de parlamentares e mais de 20 entidades do Brasil, entre órgãos governamentais (Embrapa, secretarias estaduais de Agricultura e outras), além de entidades de classe, associações de produtores e universidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, mato Grosso, Mato Grosso do Sul e até do Maranhão. Do Mercosul, participaram também o Ministério da Agricultura Uruguaio e representantes do Serviço Nacional de Sanidade e Qualidade Agroalimentar da Argentina (Senasa), do Ministério da Agricultura argentino.
HISTÓRICO
O objetivo foi nivelar as informações entre os técnicos, autoridades e operadores aeroagrícolas sobre o histórico, cenário e perspectivas quanto ao problema na região. Um dos destaques foi a apresentação do chefe do Programa Nacional de Gafanhotos e Ticuras do Senasa, Hector Emílio Medina. Ele relatou o histórico das ações de combate a gafanhotos em seu país desde a fundação do Programa, em 1897.
“Historicamente, a maior praga na região ocorreu em 1994, quando os gafanhotos chegaram até a Patagônia”, comentou. A incidência de grandes nuvens chegou a ser considerada extinta em 1954, mas elas retornaram nos anos 60. Conforme Medina, o Senasa detectou o aumento, desde 2015, na incidência de grandes nuvens de gafanhotos na região entre a argentina, Paraguai e a Bolívia.
O coordenador do Programa de Gafanhotos destacou que a nuvem que agora chegou à província de Corrientes havia sido detectada pela primeira vez em 11 de maio, quando o Serviço de Qualidade e Sanidade Vegetal do Paraguai (Senave) alertou o governo argentino de que uma nuvem de gafanhotos estava se deslocando pela região do Chaco rumo sul.
Esboço para um programa permanente no Brasil
O encontro com autoridades e parceiros do Mercosul teve também a apresentação do Sindag do plano preparado pela entidade para um programa permanente para controle de pragas de gafanhotos no Brasil. Isso a partir dos protocolos do Senasa e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O documento segue sendo avaliado pelo Mapa e abrange dados sobre as características dos insetos e sua voracidade, as formas de combate em cada estágio e a tecnologia disponível no País.
Os produtos para aplicações também são relacionados no texto preliminar do sindicato aeroagrícola, que se baseou ainda em recomendações da FAO. O documento abrange dados sobre as características dos insetos e sua voracidade, as formas de combate em cada estágio e a tecnologia disponível no País. O estudo reforça ainda os requisitos legais para as empresas aeroagrícolas operarem, além de recomendar a exigência de tecnologias de ponta, como fluxômetro (controla o fluxo de produto de acordo com a velocidade do avião) e bicos e atomizadores com capacidade para gerar o tamanho correto de gotas para cada tipo de operação.
A lista abrange ainda o sistema de posicionamento via satélite com sinal diferencial (DGPS, que tem precisão de centímetros) com capacidade de gravação de toda a operação. O documento inclui também técnicas de combate – de preferência, com os gafanhotos no solo, ao final da tarde ou início da manhã (quando a nuvem se condensa em área menor). E, em casos especiais, sobre a nuvem em voo. A equipe do sindicato aeroagrícola que elaborou o Plano de Ação contou com quatro especialistas, todos agrônomos: a doutora em Biologia e pós-doutora em Bioquímica e Fisiologia Andréa Brondani da Rocha; o doutor em Entomologia Maurício Pasini, da Unicruz, e o doutor em Produção Vegetal (sistemas automáticos de pulverização), Henrique Borges Neves Campos. O quarto especialista é Eduardo Cordeiro de Araújo, um dos pioneiros em tecnologias aeroagrícolas no Brasil.