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O homem que ensinou o País a fabricar aviões

Nascido em Bauru, no interior paulista, em 8 de janeiro de 1931, o filho do eletricista Arnaldo e da costureira Helena desde criança é apaixonado pela aviação, aprendeu a pilotar para depois aprender a projetar aviões e, assim, fez o Brasil voar alto no seleto grupo das nações fabricantes de aeronaves

Publicado em: 25/01/22, 
às 12:19
, por IBRAVAG

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Se foi o brasileiro Alberto Santos Dumont quem inventou o avião – que nos perdoem (ou não, tanto faz) os norte-americanos, pode-se dizer que foi o paulista Ozires Silva que ensinou o País, de fato, a fabricar aviões. Mais do que isso, ajudou a ligar todos os rincões brasileiros pelo ar e a colocar o Brasil no rol dos grandes fabricantes mundiais de aeronaves (em qualidade e opções para todos os mercados). Tendo completado 91 anos no último dia 8 de janeiro, desde o ano passado ele é o único brasileiro ganhador da Medalha Daniel Guggenheim. Neste caso, a mais importante distinção mundial a pessoas que realizam feitos notáveis para o avanço da aviação.

O prêmio, criado em 1929, é administrado pelo Instituto Americano de Aeronáutica e Astronáutica e, junto com Ozires, a lista de agraciados tem personalidades como Orville Wright (dos irmãos Wright, considerados os pais da aviação pelos norte-americanos), Igor Sikorsky (pioneiro na fabricação de helicópteros), Abe Silverstein (gerente da Nasa e responsável pelos avanços da tecnologia espacial que possibilitaram viagens em órbita e até a Lua) e Abraham Karem (o “pai” da tecnologia dos drones). Para o brasileiro, foi o mais recente entre 53 prêmios e condecorações nacionais a internacionais (em 15 países).

BANDEIRANTE

HISTÓRIA: Primeiro voo do bimotor Bandeirante, em 1968

Fundador da Embraer (hoje uma das maiores empresas de aviação do planeta) em 1969, antes disso Ozires liderou a equipe envolvida no projeto IPD-6504, que se tornaria depois o avião Bandeirante. O avião foi projetado pelo francês Max Holste e foi a peça-chave de uma estratégia engenhosa não só para alavancar a indústria aeronáutica nacional, mas para projetá-la para o mundo: ao invés de concorrer com os modelos norte-americanos ou europeus que estavam no mercado (e alguns fabricados sob licença no País), pensou-se em uma aeronave que atendesse às demandas do interior, com pistas em terreno irregular, curtas e afastadas de tudo.

Ou seja, um produto que poderia ser exportado (já que outros países também tinham essa demanda por aviação regional) e, assim, se aumentaria o fôlego de uma linha de montagem nacional. Para fabricar o Bandeirante, o governo brasileiro criou a Embraer, baseada no Decreto-Lei 200, que em 1967 havia definido as sociedades de economia mista. Ou seja, empresa com personalidade jurídica de direto privado, na forma de sociedade anônima e com a maioria das ações com direito a voto pertencentes à União.

Isso porque a indústria é uma atividade da iniciativa privada, e essa foi uma forma de alavancar setores estratégicos para o País. A Embraer foi criada em 19 de agosto de 1969. Ozires foi designado como seu presidente até 1986. Seis anos depois, ele voltou ao posto, para comandar o processo de reestruturação da empresa até sua privatização em 1994. Ozires também presidiu a Petrobras, Varig e foi ministro de Infraestrutura. Ele contribuiu com diversas entidades, principalmente de ensino e tecnologia. Hoje integra o Conselho Estratégico da Ânima Educação (uma entidade sem fins lucrativos focada em educação, pesquisa e projetos sociais).

O projeto agrícola

INÍCIO: fábrica da Embraer ainda em construção em São José dos Campos, em 1970

No caso da Embraer, além do Bandeirante – voltado para a aviação regional, o início da companhia teve outros dois projetos estrategicamente importantes: o jato de treinamento e ataque ao solo AT-26 Xavante e o avião agrícola Ipanema. No caso do Xavante, trata-se de uma versão nacional do Aemacchi MB-326, fabricada sob licença da Itália. Além de atender a uma necessidade da Força Aérea Brasileira, a parceria serviu para aprimorar a capacidade do lado brasileiro, já que teve transferência de tecnologia, com os técnicos italianos também trabalhando no Brasil.

Já o Ipanema surgiu devido à interferência de um velho conhecido do setor aeroagrícola: o então tenente-coronel Marialdo Rodrigues Moreira, ex-colega de academia de Ozires Silva e que nos anos 1960 havia sido cedido pelo Ministério da Aeronáutica ao Ministério da Agricultura para organizar a aviação agrícola do País. Assim como o interior precisou do Bandeirante para interligar o interior do Brasil, Marialdo foi conversar com Ozires sobre a necessidade de um avião agrícola para impulsionar o setor primário do País.

Foi sobre os episódios em torno do Ipanema que Ozires Silva conversou rapidamente com a revista Aviação Agrícola:

Inicialmente, a Embraer tinha três projetos iniciais. Um era do avião de transporte Bandeirante, que marcou o início da empresa, o Xavante, que era militar, e o avião agrícola Ipanema, que é fabricado até hoje. Isso foi uma escolha estratégica na época? O transporte, o militar e a tecnologia da agricultura?

Ozires Silva – Naquela época em que nós estávamos nesse processo de decisão dos caminhos a seguir das configurações dos aviões, eu fui procurado por um colega de turma da Força Aérea, Marialdo Moreira, que era assessor da Aeronáutica cedido para o Ministério da Agricultura. O Ministério queria desenvolver o alcance da produção agrícola, que era absolutamente fundamental no balanço das exportações e para a alimentação para a população. E o Marialdo me propôs que nós fizéssemos um avião agrícola que pudesse atuar na lavoura e lançar água nos períodos de seca1 e assim por diante.

(1) No início do projeto, chegou-se a cogitar que o avião agrícola poderia ser usado para semear nuvens e provocar chuva

POSSE: Ozires assume o comando da recém-criada Embraer, em 1970

O projeto andou logo?

Ozires Silva – Confesso que eu tive muita dúvida. O Marialdo tentava me convencer que a gente devia fazer esse avião, eu tinha confiança que poderíamos fazê-lo com relativa facilidade, porque tínhamos um projetista de primeira linha, o Guido Pessotti2. Ele era diretor técnico da Embraer e, quando ouviu a proposta do Marialdo, entusiasmou-se e falou que ele poderia fazer esse avião desde que eu autorizasse. Ele insistiu que poderia fazer o avião agrícola utilizando os meios materiais que a gente teria para o projeto do Bandeirante, mas sem aumentar os custos (da empresa) ou interferir nos planos e metas do Bandeirante, que era nossa prioridade.

O Guido e alguns outros projetistas da Embraer começaram a fazer o projeto do Ipanema. O Marialdo Moreira nos visitava frequentemente e aí o projeto do avião agrícola foi tomando forma. Aí começou a coisa, o avião agrícola ficou disponível3 e o Ministério da Agricultura reservou no orçamento para pagar pelos aviões. Mas não tínhamos ideia de como formar o preço, de modo que, de uma forma bastante precária, preparamos o contrato e com esse contrato começamos a fabricação do Ipanema ainda em São José dos Campos. Produzimos ali alguns aviões, enquanto negociávamos com o ministro da Aeronáutica Délio Jardim de Mattos para que pudéssemos comprar a Neiva4, que tinha como sede Botucatu. Foi então que paulatinamente a produção do Ipanema foi para Botucatu (onde está até hoje). Bem mais tarde, eu visitei Botucatu e fiquei impressionado porque a linha de produção do Ipanema tinha crescido bastante, com as vendas para a iniciativa privada.

(2) Engenheiro aeronáutico paulista e um dos mais importantes projetistas aeronáuticos da história do País, falecido em 2015

(3) O avião teve seu primeiro voo em 1970 e sua produção iniciou em 1972

(4) Em 1980 a empresa, que já fabricava modelos de um acordo entre a Embraer e a norte-americana Piper, foi comprada pela Embraer e passou a centralizar a fabricação do Ipanema

Continuou-se fazendo pesquisas com o Ipanema?

Ozires Silva – Ele foi experimentado em várias áreas. O pessoal lá do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) se interessou pela ideia de que ele pudesse aspergir sal na atmosfera para poder condensar as nuvens e produzir chuvas. O Guido (Pessotti) tinha também um entusiasmo enorme pela possibilidade de se produzir chuva utilizando o Ipanema. Mas não se conseguiu autorização do governo federal para que se prosseguisse. Mesmo assim, o avião seguiu o produto mais importante em Botucatu5.

(5) O Ipanema segue sendo produzido em Botucatu, está em sua sétima geração e tem mais de 1,4 mil unidades vendidas

IPANEMA: modelo teve seu primeiro voo em 1970 e entrou em produção dois anos depois, seguindo até hoje

Um dos fundadores do Sindicato Nacional da Aviação agrícola (Sindag) e atual conselheiro da entidade, Eduardo Cordeiro de Araújo6, trabalhou no projeto Ipanema nos anos 1970 e acompanhou a entrega de dez aviões agrícolas que haviam sido comprados pelo Uruguai. A própria chefe do Serviço de Aviação Agrícola do Uruguai, Mirta Vanni7, veio retirar os aviões junto com outros pilotos.
Como foi essa venda?

Ozires Silva –Essa venda para o Uruguai surgiu de uma visita do presidente do Uruguai ao Brasil. Quando ele viu que, entre os aviões fabricávamos, havia um modelo agrícola, imediatamente tomou a decisão que ia comprar os Ipanemas para o seu país. O problema é que a exportação na época era complicada. Assim como tínhamos um pessoal no Ministério da Fazenda que dificultava enormemente a importação das peças essenciais, como instrumentos do avião, o próprio motor e coisas dessa natureza. Mas, como nesse caso se tratava de uma venda de governo para governo, o governo brasileiro encampou a venda e negociou diretamente. Nós não participamos.

No caso da dificuldade em se importar componentes para as aeronaves, até quando isso durou?

Ozires Silva –Tenho a impressão que foi quando foi desfeito um departamento do Banco do Brasil, que era chefiado por um funcionário que era um obstáculo às importações. O Brasil tinha um equilíbrio entre importações e exportações e realmente era difícil produzir dólares necessários para comprar os produtos importados (porém, justamente os aviões eram um produto com boa possibilidade de exportação).

História virou animação em curta-metragem

ANIMAÇÃO: História de Ozires, Zico e a Embraer virou um tocante curta-metragem em 2021

Ozires Silva nasceu em Bauru, no interior paulista, em 8 de janeiro de 1931. Filho do eletricista montador Arnaldo Silva e da costureira Helena e irmão mais velho de Ordaisis, começou a se interessar ainda criança pela aviação. Ele e seu amigo (desde os 10 anos) Benedicto Cesar (Zico) durante a adolescência já frequentavam o aeroclube da cidade – passavam as manhãs na escola e as tardes entre os aviões. Até que um dia um construtor de aviões suíço Hendrik Kurt foi morar na cidade e construía um planador no aeroclube, sempre com os meninos em volta e lhe enchendo de perguntas. O que lhes atiçou ainda mais o fascínio pelas máquinas.

Sempre conversando sobre o assunto também em um banco no Centro da cidade, um dia um militar lhes perguntou o que eles tanto conversavam. Ao saber do fascínio dos dois, indicou-lhes o concurso para a Escola de Aeronáutica da Força Aérea. Depois de levarem bomba na primeira tentativa, em 1946, tentaram de novo no ano seguinte. E, no início de 1948, se apresentaram no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. Em 1951 terminaram o curso como oficiais e Ozires escolheu ir para Belém, pilotar Catalinas na Amazônia. Zico foi para a aviação de caça na Base Aérea de Santa Cruz, no Rio.

Eles ainda se encontravam, até que o amigo acabou morrendo em 1955, em um voo de treinamento – o jato Gloster Meteor TF-7 teve uma pane na aproximação da pista e caiu na Baia de Sepetiba. Morreram Zico e o instrutor, o capitão-aviador José Maria Marques. A partir daí, em diversas oportunidades Ozires Silva sentiu a inspiração do amigo em vários momentos da vida. Uma história contada com muita sensibilidade no curta-metragem de animação O voo do impossível, lançado no início de 2021 pela Embraer, na ocasião dos 90 anos de Ozires – confira no QR Code.

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