Fernando Schüler
Cientista político e professor do Insper
Em um mundo marcado por disputas comerciais e conflitos geopolíticos, o cientista político Fernando Luís Schüler aponta a importância de o Brasil focar em uma política externa pragmática e na abertura de mercados. “Política externa é algo de interesse estratégico do País, não pode estar submetida a interesses ou visões ideológicas e políticas de curto prazo”, pontua o professor do Insper, colunista do jornal O Estado de S. Paulo e do Grupo Bandeirantes de Comunicação, além de curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
Em entrevista concedida à Revista Aviação Agrícola (Revista AvAg), Schüler avalia o cenário político-econômico de 2025, que sinaliza para um redesenho do mapa do comércio mundial. Na sua opinião, está equivocado o posicionamento do governo Lula frente à sobretaxação de produtos brasileiros importados pelos Estados Unidos. Entende como um erro estratégico usar a Lei da Reciprocidade para fazer o presidente dos EUA, Donald Trump, reduzir as tarifas. E alerta: a crise com a Casa Branca vai elevar ainda mais a dívida pública.
Crítico de protecionismo, Schüler destaca a necessidade do Brasil promover reformas estruturais, maior abertura comercial, eficiência estatal e avanços na educação como pilares para o aumento da produtividade e, consequentemente, aproveitar as oportunidades comerciais.
Para ele, o agronegócio brasileiro é um exemplo a ser seguido, lembrando que o setor cresceu acima de 3% em média nas últimas décadas e com ganho de produtividade real. “Basicamente, porque soube encarar a competição internacional, soube se abrir para o mundo”, explica, lembrando que, obviamente, soube aproveitar a oportunidade aberta pelo fenômeno chinês que tirou entre 300 milhões/400 milhões de pessoa da pobreza, que migraram para a cidade.
Como o senhor avalia o ano de 2025 em termos políticos-econômicos, com taxação dos EUA às importações, continuação da guerra Rússia/Ucrânia e do conflito Israel/Hamas. Podemos dizer que este ano projeta um novo mapa do comércio mundial?
Olha, eu diria que o grande fato da nossa época é a guerra comercial. China e Estados Unidos em primeiro plano, que eu chamaria de Desafio Chinês, que vai muito além da relação apenas com os Estados Unidos. Por que isso? Porque a China tem um modelo político autocrático, então não é uma democracia liberal, é um estado de extração meritocrático e uma economia conectada a uma economia de mercado. Então, ela produziu uma síntese inédita no mundo ocidental. Pela primeira vez, nós temos na história ocidental um competidor de um modelo político alternativo no campo da economia de mercado e com uma alta capacidade de produtividade. Isso obriga os países ocidentais, a começar pelos Estados Unidos, a investirem em processo de abertura, reforma do Estado e modernização tecnológica. A longo prazo não há outra opção na guerra comercial com a China do que fazer crescer a produtividade.
E onde se encaixa o tarifaço de Donald Trump?
A guerra tarifária é uma estratégia de curto prazo. Ela serve para se obter vitórias caso a caso, com prazo limitado, algum ganho eleitoral, porque alimenta uma retórica populista para o público interno. No caso dos Estados Unidos, os eleitores do MAGA (sigla de Make America Great Again, que significa Tornar a América Grande Novamente, tema da campanha de Donald Trump desde 2016), vamos dizer assim, que sentiram o processo de globalização, especialmente no chamado Cinturão da Ferrugem, antigas zonas industriais que perderam espaço com a globalização, têm toda uma crítica à imigração e à invasão de produtos chineses. Então há uma retórica na guerra tarifária que vai ao encontro desse público, mas, a médio prazo, encarece produtos dentro dos Estados Unidos e protege setores da economia. Isso significa que ela tem uma tendência a prejudicar a grande produtividade e, fundamentalmente, não resolve o problema, porque você não vai ganhar uma guerra comercial pela via tarifária.
Para onde caminha o governo Trump?
O governo de Trump começou com o DOGE (Department of Government Efficiency), que era o departamento liderado pelo Elon Musk. Parecia que iria caminhar nessa direção, ou seja, uma grande reforma no Estado americano, diminuindo o custo do Estado, as regulamentações, o custo da burocracia, abrindo a economia, quer dizer, que haveria uma espécie de nova revolução de mercado, uma nova revolução ao estilo Reagan (Ronald Reagan, presidente dos EUA de 1981 a 1989). Mas o que se viu foi o contrário, uma aposta na guerra tarifária, uma espécie de neomercantilismo por parte do governo. E acho que é simbólico nisso o afastamento em relação ao próprio Elon Musk a partir de uma legislação orçamentária aprovada no Congresso que expande o gasto público e vai na contramão exatamente dos esforços que o DOGE vinha fazendo. Eu acho que nós vivemos o que Niall Ferguson – que é um historiador em Harvard e no Hoover Center, em Stanford/EUA – designou como uma nova Guerra Fria. Eu arriscaria dizer que é uma guerra fria tripartite. Nós temos uma nova Guerra Fria em um modelo não bipolar, mas a partir de três grandes polos de poder. A China, cuja estratégia é fundamentalmente a ocupação de espaços econômicos, até porque sabe que a sua vantagem comparativa no sistema global é a produtividade econômica e a tecnologia. A Rússia com uma ideia expansionista ainda, que alguns veem como típica do século 20, e que reflete muito essa mentalidade do neonacionalismo russo. Gira em torno da liderança do Putin*, de retomada de zonas de influência da antiga União Soviética, mas que é um velho modelo do imperialismo bélico. Ainda traz traços da primeira Guerra Fria. E os Estados Unidos, que vêm se reposicionando. Ao contrário que muitas vezes se diz, não é um país em decadência. Os Estados Unidos hoje têm um PIB (Produto Interno Bruto) per capita perto de 85 mil dólares, muito superior à média dos países europeus. A Inglaterra, para se ter uma ideia, registra um PIB per capita um pouco acima de 50 mil dólares. Então, os Estados Unidos cresceram muito, de maneira muito forte, nas últimas duas/três décadas. É um país que lidera a corrida tecnológica, mas que nesse momento enfrenta o desafio de como lidar com o modelo chinês. E eu acho que é isso que define muito das tensões do mundo contemporâneo.
*Vladimir Putin é presidente da Rússia desde 2012. Ele vem ocupando cargos contínuos como presidente ou primeiro-ministro desde 1999.

Doutor em Filosofia e mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Pós-Doutorado pela Universidade de Columbia (Nova York), Schüler é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (UB).
Foto: Castor Becker Júnior/C5 NewsPress
E quais seriam os riscos e as oportunidades para os países emergentes, principalmente o Brasil, diante dessas incertezas econômicas globais?
O Brasil é um país com uma economia ainda muito fechada. Nós temos uma tarifa média de importação acima de 11%. Se compararmos com o Chile que é pouco mais de 3%, o Brasil é um país com uma indústria protegida e isso, obviamente, tem impacto na produtividade. Nós temos a produtividade do País estancada há 40 anos, especialmente na área de indústria e serviços. O que realmente teve um diferencial nos últimos anos foi o agronegócio. O agronegócio cresceu acima de 3% em média nas últimas décadas e com ganho de produtividade real.
O que impulsionou a projeção do agronegócio brasileiro no mercado externo?
Basicamente, o agronegócio brasileiro soube encarar a competição internacional, soube se abrir para o mundo e, obviamente, o fenômeno chinês ajudou. A China retirou 300 milhões/400 milhões de pessoas da pobreza, que migraram para as cidades. Essas pessoas precisavam de alimento, de proteína, e o Brasil foi o grande fornecedor. O agronegócio brasileiro ganhou esse “jogo” por competência, por iniciativa, por capacidade de se colocar, por produtividade. Contribuiu para isso uma carga tributária relativamente baixa em relação a outros setores da economia, um setor menos regulado e menos dependente de mão de obra. Eu penso que o Brasil deveria olhar mais para o agro, para ver o que aconteceu e como de alguma maneira a economia como um todo poderia aprender com o agro. E uma das lições é essa: abertura internacional e carga tributária mais baixa. Aí o Brasil precisa enfrentar alguns desafios estruturais. O primeiro deles é acelerar o processo de destruição criadora*, reduzir tarifas de importação, especialmente sobre bens de capital, máquinas e equipamentos, produtos de tecnologia, para que o País possa crescer em produtividade. Segundo desafio: o País precisa melhorar a eficiência do Estado. O Estado consome um terço do PIB nacional e tem uma baixíssima produtividade. Então, nós drenamos perto de 33% da riqueza do País para a máquina do Estado. Isso afeta toda a economia. Melhorar a eficiência do Estado é estratégico para o País, bem como reduzir custos. A carga tributária brasileira precisa cair para um patamar abaixo de 30% urgentemente. Então, nós precisamos revisar incentivos fiscais e toda a política de pessoal. O Brasil hoje gasta, em termos de PIB, mais de 13% com o funcionalismo público. Nós gastamos mais do que a média europeia, que tem países muito mais velhos que o Brasil, com o welfare state, estado assistencial, muito melhor consolidado do que o Brasil e com gastos abaixo de 10%. Nós gastamos muito com o Poder Judiciário, muito com o Poder Legislativo, muito com o financiamento eleitoral.
*Destruição criadora é um conceito popularizado pelo austríaco Joseph Schumpeter e refere-se ao processo pelo qual a inovação e o progresso tecnológico acabam destruindo modelos de negócios antigos ao mesmo tempo que criam novas oportunidades e formas de crescimento. Para Schumpeter, esse movimento é essencial para o desenvolvimento econômico e representa a dinâmica da economia capitalista em que velhas estruturas são substituídas por novas, mais eficientes e inovadoras.

O cientista político considera a posição do governo brasileiro em relação às taxações de Trump aos produtos produzidos no Brasil equivocada. No seu entender, esse embate com a Casa Branca tende a aumentar ainda mais a dívida pública.
Foto: Divulgação
O que é preciso para enxugar o Estado?
Precisamos de uma nova reforma da Previdência. Nós gastamos muito com programas sociais mal desenhados, que não emancipam as pessoas, que as mantêm dependentes do governo. O Brasil precisa de um redesenho do Estado, precisa custar menos e ser mais eficiente porque quem paga essa conta é o setor privado. Afinal, o Brasil precisa aumentar a carga tributária para sustentar um Estado ineficiente. E, por último, o Brasil precisa fazer um investimento em educação. Não existe país que avança em termos de produtividade e posicionamento global com uma mão de obra inteiramente despreparada. Então, se apenas 5% dos alunos que terminam o ensino médio têm o conhecimento adequado em matemática, que é o dado mais recente no Brasil, você tem um problema muito grave. Se você pegar os dados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos, que é um dos testes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE) com alunos de 15 anos e que é feito a cada 3 anos, o Brasil praticamente não evoluiu nada entre 2000 e 2022, que é o tempo de realização do teste. Isso porque, de novo, quem presta o serviço de educação é a própria máquina estatal. Como a máquina estatal nos estados e municípios é muito ineficiente, por causa da estabilidade do emprego, por causa da lei de licitações, por causa do mandonismo político, enfim, pela falta de competição, temos esse problema. Assim, vivemos com uma economia fechada, um Estado muito caro e uma educação de baixa qualidade na média. Isso, obviamente, é uma espécie de bola de chumbo amarrada nos pés do País.

Schüler, que foi palestrante no Congresso da Aviação Agrícola de 2019, aponta a necessidade de o Brasil modernizar suas legislações, com políticas que estimulem o setor privado, incluindo aqui a aviação agrícola, a investir na produtividade.
Foto: Castor Becker Júnior/C5 NewsPress
A combinação de um mundo mais instável, com guerras e disputas comerciais, exige uma diplomacia econômica mais assertiva. Na sua avaliação, o Itamaraty tem conseguido equilibrar interesses comerciais com a necessidade de alinhamento geopolítico em um mundo cada vez mais polarizado?
Eu penso que o Itamaraty é o menor dos nossos problemas. O Itamaraty tem uma formação muito competente. Nós temos ótimos diplomatas. Recentemente, tivemos um diretor-geral da OMC*. Então, o Brasil tem, historicamente, diplomatas da mais alta capacitação. O problema é a orientação dos governos. Hoje, por exemplo, nós temos uma situação, na minha visão, anômala, em que quem, na prática, comanda a política externa brasileira é o assessor-chefe da Assessoria Especial do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o embaixador Celso Amorim, e não o Itamaraty. Isso é uma disfuncionalidade. Deveria se dar ao Itamaraty autonomia para que ele desenvolva, com o respaldo do governo, uma política de abertura de mercados para o Brasil. A política externa precisa ser pragmática, ela não pode ter um marco ideológico. Por exemplo, na relação com os Estados Unidos, o Brasil errou. Hoje há uma situação, sem entrar em aspectos ideológicos e políticos, que um deputado de oposição, que é o Eduardo Bolsonaro, tem mais influência na Casa Branca do que o governo brasileiro, que a diplomacia brasileira. Isso é um non sense. Não é possível uma coisa dessa. Por que isso? Alguém pode dizer: – É um problema ideológico. Esse é o ponto. O problema ideológico não deveria pautar o nosso relacionamento internacional. O presidente Lula deveria ter feito um esforço desde a transição do governo para se aproximar do nosso maior parceiro no hemisfério ocidental, que historicamente são os Estados Unidos. E aí é preciso comparar com a atitude do nosso vizinho. O presidente da Argentina, Javier Milei, fez exatamente o inverso. Ele apostou em uma diplomacia presidencial muito agressiva com a Casa Branca e, hoje, negocia um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, a liberação de vistos para cidadãos argentinos nos Estados Unidos, enquanto o Brasil vive com essa tarifa de 50%. Na política se diz uma frase que eu gosto muito de dizer: “escolhas têm consequências”.
*OMC sigla de Organização Mundial do Comércio. De 2013 a 2020, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo foi o diretor-geral da instituição internacional.

Schüler espera que reforma do Estado, com redução do custo da máquina e da carga tributária, investimentos em infraestrutura, desregulamentação, combate a ideologização de políticas públicas e uma visão pragmática de política externa sejam discutidas nas eleições presidenciais do ano que vem.
Qual é o caminho que o Brasil escolheu?
Relacionamento via BRICS*, que é hoje uma área de influência chinesa. Então, o Brasil vai à China, reúne-se com o Xi Jinping (presidente da República Popular da China desde 2013), vai nas festividades do Dia da Vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra, com um grupo enorme de ditadores. Privilegia relações com Rússia e China, apoia discretamente pretensões russas na Ucrânia, faz crítica ostensiva a Israel na guerra no Oriente Médio. Isto é: se alinha a um bloco político-ideológico global. O Brasil abre mão, não só de uma neutralidade diplomática, que sempre foi uma tradição brasileira, mas de um alinhamento mais claro com as grandes democracias ocidentais e perde a noção de uma política de estado pragmática de abertura de mercado. Ainda, tira muito da autonomia do Itamaraty para a condução da nossa diplomacia. As coisas não estão sendo bem-feitas. Dito isso, o governo anterior também cometeu erros, também se produziu muita ideologização em política externa. Política externa é algo de interesse estratégico do País, não pode estar submetida a interesses ou visões ideológicas e políticas de curto prazo. Do ponto de vista do setor exportador brasileiro, ou de estudantes que querem estudar fora, ou da atração de investimentos estrangeiros para o Brasil, pouco importa quem está no governo, até porque são negociações de longo prazo que atravessam vários governos. Eu acho que falta essa maturidade para o Brasil.
*BRICS a aliança intergovernamental inicialmente reunia Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2011, foi incluído o S, com admissão da África do Sul, em inglês South Africa, ao grupo. A adesão do Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Irã ocorreu em 1 de janeiro de 2024. Neste ano, a Indonésia ingressou como membro pleno.

O agronegócio é apontado pelo professor do Insper como um setor da economia brasileira que vem crescendo com produtividade real, inclusive ganhando mercados, como o chinês, por competência.
E quando se chega agora na questão das taxações, o Brasil anunciando que usará a a lei da reciprocidade. Isso é um caminho seguro para o Brasil?
Eu considero um caminho completamente equivocado. O que o Brasil deveria fazer, no caso da relação com os Estados Unidos? Primeiro, fazer uma pergunta para si mesmo: – há alguma lógica, algo consistente nessas acusações que são feitas contra o Brasil no campo dos direitos individuais, direitos humanos, democracia, censura? Nós tivemos o voto do ministro do STF Luiz Fux no julgamento de Bolsonaro (Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil de 2019 a 2022). Não entro no mérito do julgamento, mas as questões formais colocadas pelo ministro Fux são muito claras. Segundo o ministro, o Brasil de fato infringe normas de organizações internacionais e direitos humanos, como a ampla defesa, por exemplo. Ele inclusive usou o conceito de data dump*, como um fator que dificultou o exercício da defesa. De novo, não é uma questão do mérito, é uma questão da forma. Quando se fala em direitos individuais, se fala em problemas ligado à liberdade de expressão, são questões formais, muito mais do que de mérito. Nós tivemos, nos últimos anos, muitos problemas ligados à censura prévia, a decisões arbitrárias tomadas pelo sistema de justiça. E será que não é o momento do Brasil fazer um mea-culpa, no sentido interno, não é em relação a esse ou aquele país estrangeiro. Eu sempre sou contra matar o mensageiro para não ler a mensagem. Se nós temos hoje um ministro sancionado pela Lei Magnitsky**, a primeira pergunta que o País precisa fazer é se existem razões para isso ou não, antes de nos escondermos atrás de um discurso nacionalista. É sempre muito confortável dizer: – ah! Estão nos agredindo. Será que do ponto de vista daquilo que interessa ao Brasil – aos brasileiros, aos empresários, aos investidores, aos cidadãos –, nós não teríamos um problema de fato? Então, para mim, essa é a grande questão envolvida nessas relações com os Estados Unidos, porque o custo está colocado. O governo federal criou um programa agora para compensar o setor exportador, e quem vai pagar essa conta é o contribuinte. Vai para a dívida pública porque vai ser pago fora da regra do teto. A dívida pública brasileira vem crescendo e vai chegar no ano que vem perto de 80% do PIB. Nós estamos, portanto, criando uma bomba fiscal. E o próximo governo vai ter que lidar com essa situação.
*Data dump ou document dumping refere-se a sobrecarregar o processo com um volume expressivo de documentos em um curto período, dificultando à defesa analisar de forma adequada cada documento. Com isso, prejudicando potencialmente o princípio do contraditório e da ampla defesa.
**Lei Magnitsky foi aplicada ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em 30 de julho deste ano. Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei prevê sanções como o bloqueio de contas bancárias e de bens em solo norte-americano, além da proibição de entrada no país.

Schüler ao falar das perspectivas para o Brasil aponta para a necessidade de pensar o futuro do País, lembrando que no próximo ano haverá eleições para a Presidência da República.
Foto: Senar-RS – Maurício Concatto
Como cientista político e filósofo, quais são as principais implicações éticas e estratégicas para o Brasil navegar em um contexto global cada vez mais fragmentado e volátil?
Penso que o Brasil deveria responder uma pergunta que foi feita pelo Mário Covas* na primeira eleição direta para a Presidência da República em 1989 – nós vamos ter a décima eleição no ano que vem: – O Brasil quer de fato ser um país capitalista, um país de mercado? Então, se a resposta for sim, nós precisamos fazer uma revolução capitalista. Isso, o Mário Covas, que era um homem de esquerda, dizendo. Mas ele tinha uma visão estratégica de longo prazo para o Brasil. Então o Brasil nos últimos anos desenvolveu algo muito positivo, que foram reformas modernizantes que abriram espaço ao setor privado. Então nós temos o marco regulatório do saneamento básico e, até o final do ano que vem, nós vamos ter perto de metade do saneamento básico promovido pelo setor privado, por grandes empresas. Isso, menos de dez anos atrás, era 5% a 6%. Um setor que era totalmente estatal, hoje vem se tornando majoritariamente privado. Os aeroportos no Brasil e a infraestrutura viária são outros exemplos. Os aeroportos no Brasil administrados por uma estatal, a Infraero, eram deploráveis. Ao se abrir esse mercado, hoje, temos aeroportos de padrão internacional, embora ainda tenhamos muito a avançar. Há Estados onde até 40% da malha viária foi concedida à iniciativa privada, como é o caso de São Paulo, e está em ótimas condições, refletindo em um custo para quem faz transporte rodoviário muito mais baixo na prática, do que em regiões sem pedágio. Onde a rodovia ainda não foi dada em concessão, há um enorme custo de manutenção da frota, além do custo de segurança, etc, porque as estradas são, às vezes, intransitáveis. E aí vem tudo, a estrutura portuária, a estrutura ferroviária, toda a infraestrutura que é vital para o setor produtivo e para o setor exportador. Na minha visão, esse gargalo da infraestrutura, nós só vamos fechar se modernizarmos a regulação, como fizemos com o saneamento básico, e apostarmos na lógica da parceria público-privada, as PPPs. Segundo o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Brasil tem a melhor regulação na América Latina relativa a concessões para a iniciativa privada. Então, isso é um aspecto positivo, onde o Brasil, de fato, avançou.
*Mário Covas (1930/2001) – Político brasileiro filiado ao PSDB, Mário Covas foi governador do Estado de São Paulo (1995/2001). Também foi prefeito de São Paulo capital, senador e deputado federal pelo Estado de São Paulo. Inclusive, liderou a bancada do PMDB no Senado durante a Assembleia que elaborou a Constituição de 1988.

Modernização regulatória é apontada pelo cientista político como um dos caminhos para deixar o País atraente para investimentos, inclusive de capital estrangeiro, e imprimir competitividade ao produto brasileiro.
Foto: Castor Becker Júnior/C5 NewsPress
Partindo desse princípio, qual deve ser a prioridade do País?
A prioridade do País deve ser produzir legislações que favoreçam o setor privado, inclusive, a aviação agrícola. Eu vejo em vários Estados políticas demagógicas, querendo proibir ou limitar a atividade aeroagrícola. Essa hiper-regulamentação desestimula o ganho de produtividade, desestimula novos entrantes no setor, desestimula a aquisição de equipamentos mais modernos. Mas tudo parte daquela primeira pergunta: – nós queremos uma economia de mercado ou não? O que fez o agronegócio brasileiro crescer foi a tecnologia, a genética, o controle de pragas, a adaptação de sementes, porque senão você não compete no mercado internacional, você não tem preço para competir. Então, eu diria que essa é a grande questão brasileira. O caminho nós sabemos qual é. Nós fizemos uma reforma trabalhista, que melhorou as condições de contratação de mão de obra; nós fizemos uma reforma da previdência, que reduziu um pouco o custo previdenciário – não tanto quanto se deveria, mas fizemos. Nós concedemos autonomia ao Banco Central, deixando a gestão da política monetária no campo técnico e não político, o que é vital para o País. Nós criamos algumas políticas como a BR do Mar*, que traz algumas políticas de modernização regulatória, como a da navegação de cabotagem, por exemplo, abrindo o mercado para o investimento estrangeiro e assim por diante. Então, esse é o caminho brasileiro. Em minha visão, se o País quer de fato ter uma inserção soberana no mundo, participar de alguma maneira desta nova configuração geopolítica, disputar mercados com os chineses, alimentar essas nações emergentes que continuam reduzindo a pobreza, que continuam em processo de migração do campo para a cidade, que precisam de proteína, que precisam dos nossos commodities, etc, precisa fazer esse esforço. Veja a política de modernização da Embraer, em 1990, produziu uma empresa que sozinha está entre um dos dez setores exportadores de maior sucesso do Brasil. Talvez a Embraer seja a empresa brasileira mais bem-sucedida no mundo, sendo a terceira maior empresa de aviação do planeta. Simplesmente porque houve um investimento em tecnologia, porque houve uma abertura, porque houve um investimento privado. Enfim, o caminho brasileiro, na minha visão, é conhecido. De novo: reforma do Estado, com redução do custo e da carga tributária, investimento em infraestrutura, desregulamentação, parceria público-privada, combate a qualquer tipo de ideologização de políticas públicas, uma visão pragmática de política externa. Essa é a agenda brasileira, que eu espero que seja discutida devidamente nas eleições do ano que vem.
*Política BR do Mar, instituída pela Lei 14.301/2022 e regulamentada pelo Decreto 12.555/2025, estimula o transporte de cargas por cabotagem (navegação entre portos do mesmo país), reduzindo a dependência do modal rodoviário. O programa busca aumentar a oferta de embarcações, criar novas rotas, diminuir custos logísticos e estimular a modernização e sustentabilidade do setor naval, inclusive através da criação de “rodovias marítimas”. Além de contribuir para uma matriz de transporte mais sustentável e moderna, tem como objetivo estimular as empresas brasileiras e o fretamento de embarcações estrangeiras, além de promover a modernização e o desenvolvimento de soluções inovadoras e sustentáveis na indústria naval.