No rastro de seus mestres, o engenheiro agrônomo Cleber Vieira Canabarro Lucas foi uma voz forte dentro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para tirar a aviação agrícola da informalidade e tornar a ferramenta de aplicação a mais regulamentada do Brasil e tecnicamente segura. Ele ajudou a redigir o Decreto-Lei 917, de 7 de outubro de 1969, criando a atividade para que os órgãos de fiscalização e operadores tivessem um instrumento forte nas mãos para desenvolver o setor. Por sinal, uma legislação que coloca o governo como responsável pela promoção da aviação agrícola no Brasil.
Cleber cumpriu a legislação à risca e foi além. Quando o setor foi atacado, investigou cada denúncia e assim derrubou teses que maculavam a atividade. Treinou agrônomos para orientar os produtores rurais e operadores. Mostrou que a aviação agrícola era importante para defender as lavouras e fazer a vida proliferar, como foi o caso do povoamento aéreo de um lago no município de Guaíba/RS. Lutou pela normativa que autorizava o voo agrícola noturno, que saiu depois que se aposentou em 1995, como Auditor Fiscal Federal Agropecuário.
Entusiasmado pela aviação agrícola, Cleber acompanhou de perto a evolução tecnológica do setor. E foi com essa garra que, durante a pandemia de Covid-19, escreveu o livro Minhas Boas Memórias. O local escolhido para contar sua história foi o escritório, onde guarda as lembranças de uma trajetória profissional intensa.
Nessa galeria de boas recordações, não poderiam faltar as fotos da família. Questionado em relação ao sobrenome, Cleber conta que é sobrinho tetraneto do comandante farroupilha David Canabarro. No entanto, não possui nada que lembre o parente distante a não ser a árvore genealógica. Já sobre o pai, o major-brigadeiro aviador Rube Canabarro Lucas, as histórias são muitas. Inclusive confessa que foi dele que herdou o gosto pela aviação, que uniu à lida que aprendeu com os peões durante as férias na estância de seus avós.
Como teve início seu trabalho com a aviação agrícola?
Em resumo, comecei cedo a colaborar com a aviação agrícola. Eu tinha meus 28 anos, quando me ofereceram um curso de Planejamento de Missões por Avião. Eu era funcionário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em Porto Alegre (RS), e estava voltando de uma especialização em sementes, que durou dois meses em Pelotas, quando o delegado substituto me telefona e eu resolvi aceitar. Aquilo mudou a minha vida, porque a partir dali eu entrei em contato com a aviação agrícola. O nome do curso foi trocado mais tarde para Coordenador de Aviação Agrícola (CCAA). No que eu saí do curso, no dia da formatura, em Brasília, estava sendo montada a Equipe Técnica de Aviação Agrícola (ETEAV), que tinha como chefe o major Marialdo Rodrigues Moreira1 (depois promovido a tenente-coronel), assessor do ministro da Aeronáutica (marechal-do-ar Eduardo Gomes). O major Marialdo diz assim: “– Oh, gaúcho, eu tenho uma missão. Vai ser a primeira de um coordenador técnico do Ministério da Agricultura.” Fui enviado para fazer o combate da lagarta do trigo que estava infestando o Rio Grande do Sul. Ele avisou que iria colocar aviões suplementares do Ministério da Agricultura.
(1)O tenente-coronel aviador Marialdo Rodrigues Moreira foi cedido pelo Ministério da Aeronáutica ao Ministério da Agricultura em 1966 e foi decisivo para organizar e impulsionar o setor aeroagrícola brasileiro.
De onde viriam esses aviões?
Acontece que o Ministério da Agricultura tinha, antigamente, as Patrulhas Aéreas (Patae). Eram poucos aviões adaptados, dois ou três. E eles faziam o trabalho de socorro às lavouras. Eu vim para o Rio Grande do Sul e coordenei essa grande campanha. Aviões agrícolas eram poucos, e o ministério importou cinco Pawnee, da Piper.
Como era feita a aplicação dos produtos na época, quais cuidados tomados?
Eu e minha equipe fomos para o município de Ijuí e montamos nossa sede na Cooperativa Tritícola Ijuí2. O engenheiro agrônomo Ruben Engelfritz da Silva era o presidente na época e me deu todo o apoio necessário. De lá, nós começamos a irradiar as orientações via fôlderes. Sei dizer que nós aplicavámos os produtos com todo o cuidado. Fazíamos a preleção antes da aplicação, para a equipe verificar as condições de vento, calor, umidade, aquelas técnicas todas para a melhor segurança e eficácia dos produtos. Depois de terminado esse trabalho, eu fui chamado a Brasília, e o tenete-coronel Marialdo propôs ao diretor-geral que me desse um elogio, que foi publicado no Boletim de Pessoal do Ministério da Agricultura. Então, me convidaram para formar a equipe técnica da ETEAV. Nesse ínterim, surge a brusone do arroz no Rio Grande do Sul. E o tenente-coronel Marialdo me chama para comandar a missão. Resultado: eu fiz o trabalho de combate à brusone do arroz, com aviões agrícolas em 1968/início de 1969.
(2)A Cotrijuí, como é popularmente conhecida, foi fundada em 1957, como Cooperativa Regional Tritícola Serrana. Atualmente, chama-se Cooperativa Agropecuária & Industrial
Quando o senhor trabalhou na Fazenda Ipanema?
Depois da missão de controle à brusone no arroz, a pedido do tenente-coronel Marialdo, eu fui ser o gestor do Curso Coordenador de Aviação Agrícola, em Sorocaba (onde ficava a Fazenda Ipanema, em uma área que pertence ao município de Iperó/SP). Foi nesta época, que disse a Marialdo que estava faltando uma pessoa que fizesse o meio de campo. Assim, surgiu o Curso de Técnico Executor de Aviação Agrícola (CEAA). A primeira turma ocorreu em 1969, junto com o Curso de Piloto Agrícola (Cavag) e de coordenador, realizados também na Fazenda Ipanema. Estes cursos ficaram muito bons porque nós fazíamos os trabalhos de campo já em equipe. Estavam ali o piloto agrícola treinando, o técnico agrícola e o agrônomo, como coordenador. Foi uma demonstração de como se trabalha em campo com uma equipe formada. Eu faço um parêntese, aqui: naquela época, a maioria dos aviões agrícolas brasileiros era adaptada e os pouquíssimos importados eram o Pawnee, da Piper, e o AgWagon, da Cessna. Também tinha um pequeninho, da Aero Commander, que depois virou a Thrush.
E os pilotos mais antigos, que já voavam na aviação agrícola, como ficaram?
Para eles, nós precisávamos fazer uma orientação técnica. Convidamos todos os pioneiros e levamos para a Fazenda Ipanema para dar uma aula sobre prevenção de acidentes, aquilo que eles não tinham. Eu me lembro que apareceram pilotos famosos. E eu estou dando uma aula sobre a aeronave, recomendando que largassem o avião adaptado, que normalmente era um Piper, um PA-18, que tinha asa alta. Como naquela época, não havia GPS, era na base do visual e do bandeirinha (funcionário que marcava a linha de aplicação acenando uma bandeira branca, para que o piloto avistasse o início e o fim do traçado). Então, quando o avião fazia a curva para enquadrar um bandeirinha, a asa tapava o outro. O piloto não tinha visão. Outro motivo: a asa alta quebra quando bate, e os montantes espetam a carlinga. É um perigo. Ainda, o hopper do avião adaptado ficava atrás do piloto, então em uma batida tudo ia para cima do operador. Lembrei que o avião fabricado para aplicação aérea é uma cápsula e é feito para bater, tem muitos cintos de segurança, não tem nada em relevo no painel justamente para proteger o piloto. As pernas do piloto são bem afastadas para não dar hérnia. Em cima da carlinga tem um cabo de aço. O trem de aterrissagem também tem uma laminazinha. E eu exagerava no curso: – Tudo isso quer dizer, em último caso, se bater o piloto sai. A minha vida sempre foi bárbara em termos de coincidência boas. Aí, levanta um piloto e diz: “– o senhor tem razão. Eu pilonei em um avião agrícola especializado, trabalhando na cana-de-açúcar. Estou aqui, vivo, graças ao avião. Se fosse um adaptado, eu estaria morto”.
Quando começou sua trajetória no Ministério da Agricultura?
Graças ao meu trabalho em Brasília, eu fui nomeado para trabalhar como delegado do Ministério da Agricultura. Aí, eu comecei a me dedicar em termos mais amplos ao desenvolvimento da aviação agrícola no Brasil. Aí, eu tinha poder. Antes disso, houve o primeiro Simpósio de Aviação Agrícola Brasileira no Anhembi, em São Paulo, 1971. Eu fiz duas palestras – uma sobre aviação agrícola, envolvendo políticas para o setor até aeronaves, e a outra sobre semeadura de pastagens por avião agrícola.
Nesse evento, o senhor chegou a conhecer o Clóvis Candiota (primeiro a piloto agrícola do Brasil) e a Ada Rogato (primeira mulher a pilotar um aviação agrícola no Brasil e a segunda no mundo)?
Não, não. O Clóvis foi o primeirão, a segunda foi a Ada Rogato, trabalhando na broca-do-café. Mas tem boas coincidências na minha vida. Eu conheci a famosa Mirta de Barbot3. Eu fui fazer uma palestra em Tacuarembó (Uruguai) sobre aviação agrícola, convidado pelo Instituto Interamericano de Ciências Agrícolas, que fica na Costa Rica (América Central). Na ocasião, eu já era delegado do Ministério da Agricultura e eu fui por Montevidéu (capital) e fiz uma visita ao Ministerio de Ganadería y Agricultura, e quem me recebe? Mirta de Balbot. Nos identificamos. E ela, entusiasta da aviação agrícola e piloto agrícola, eu digo: – que maravilha. Nós, no Brasil, temos uma piloto agrícola, também, espetacular, a Ada Rogato. No que eu falo, ela abriu um sorriso de orelha a orelha e disse: “– quando a Ada Rogato saltou de paraquedas, quem vinha pilotando o avião era eu. É minha amiga de anos.” Ela pegou o carrinho dela, ela era chefe dos Serviços Agronômicos, e fomos ao hangar, onde havia mais ou menos 60 Thrush Commander na época. O maior potencial de aviação era governamental. No outro dia, fui para Tacuarembó, e ela me fez uma baita surpresa, indo me assistir. Gentileza bárbara, que retribui oferecendo duas vagas cortesia do Curso de Coordenador de Aviação Agrícola para agrônomos deles.
(3) Mirta Vanni G. Ravenna de Barbot (De Barbot é nome de casada) foi a primeira mulher a pilotar uma aeronave agrícola no mundo. Sua história pode ser conferida na edição número 2 da Revista Aviação Agrícola, disponível no site (revistaavag.org.br).
O senhor teve a honra de conviver com personalidades que fizeram a diferença no processo de transformar a aviação agrícola na potência que é hoje?
Eu tiro o chapéu para três pessoas: Marcos Vilela Magalhães Monteiro4 e José Carlos Christofoleti5. Eles foram meus professores. Eu me lembro que o Marcos Vilela me incutiu aquela chama pela aviação agrícola. Já trazia o gosto pela aeronáutica de casa, por causa do meu pai, que era major-brigadeiro. O Vilela era bárbaro. Nós ficamos no mesmo quarto durante o primeiro curso de coordenadores. Eu me lembro dele levantando de madrugada indo na janela olhar como estava o tempo para ver se tinha vento e a sua direção. Naquele tempo, não havia toda essa especialização meteorológica de hoje. O outro foi o tenente-coronel Marialdo. Ele acreditou em mim, me levou para Brasília. Inclusive, depois do segundo curso que eu coordenei na Fazenda Ipanema, recebi três propostas de emprego. Porém, eu estava noivo no Rio Grande do Sul. Fiquei com a vaga de substituto do delegado6 do Ministério da Agricultura no Rio Grande do Sul, Athos Muniz de Vasconcellos, durante dois ou três anos e depois passei a titular. Nesse meu primeiro período, fiz meus trabalhos apoiando a aviação agrícola. Nós reuníamos o pessoal da aviação agrícola no anfiteatro do Ministério da Agricultura para passar orientações. Também fazíamos uma articulação para promover a atividade.
(4)Marcos Vilela Magalhães Monteiro – doutor em Agronomia com ênfase em Tecnologia de Aplicação – foi responsável pela introdução de equipamentos e tecnologias importantes para o controle fitossanitário. Ele foi o entrevistado da edição julho/setembro 2022, disponível no site (www.revistaavag.org.br)
(5)José Carlos Christofoletti – também engenheiro agrônomo foi professor da primeira turma de coordenadores agrícolas na Fazenda Ipanema, mais tarde assumiu como chefe da Divisão de Treinamento do Centro Nacional de Engenharia Aeronáutica (Cenea). Christofoletti foi entrevistado na edição abril/junho 2023, da Revista Aviação Agrícola, disponível no site (www.revistaavag.org.br).
(6)O cargo ocupado por Cleber Canabarro Lucas passou por diferentes nomenclaturas enquanto trabalhou, começou como diretor, depois delegado e atualmente a função é denominada superintendente.
O nome Ipanema dado à aeronave fabricada pela Embraer foi decidido em uma das suas aulas?
Isso aconteceu ainda durante o curso que eu estava coordenando e dando aulas na Fazenda Ipanema. O tenente-coronel Marialdo tinha ido conversar com o coronel Ozíris Silva, lá na Embraer, sobre o primeiro avião agrícola brasileiro e chega na aula, pede uma pausa para todos e anunciou: “– Nós vamos escolher hoje, aqui, o nome do avião agrícola brasileiro. Vamos fazer uma votação.” Eu me lembro que o gaúcho José Ivan Schumann, que era piloto da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul, sugeriu Quero-Quero, aí os outros votaram Ipanema em homenagem à Fazenda Ipanema, que é o berço da aviação agrícola tecnificada no Brasil. Foi da Fazenda Ipanema que as técnicas aeroagrícolas irradiaram para o País inteiro.
O senhor também contribuiu para outras definições do desenvolvimento do Ipanema?
Eu fui enviado aos Estados Unidos em 1970 para participar como delegado do governo brasileiro da 4ª Conferência Anual da Associação dos Aplicadores Aéreos dos Estados Unidos, promovida pela NAAA (sigla em inglês da Associação Nacional dos Aplicadores Aéreos), em Las Vegas. Porém, a minha missão era sair dali e visitar todas as empresas que fabricavam os aviões agrícola que estavam sendo importados pelo Brasil. Inclusive, devíamos escolher o motor para o Ipanema. Eles estavam em dúvida entre o Lycoming da Piper e o da Cessna, o Continental. Com isso, eu visitei as duas fábricas da Piper, uma em Lock Haven (Pensilvânia, onde eram produzidos os aviões bimotores da marca). Lá, eu conheci William Piper, que me deu um par de abotoaduras e um pregador de gravata. O monomotor da Piper era feito em Vero Beach, uma hora de avião acima de Miami. Lá, estava sendo fabricado o Pawnee Two, que tinha um motor Tiara Continental, que estava sendo lançado. Era um Pawnee já diferenciado, com maior potência de motor, já não tinha montante (barras grandes que ligam as asas na carenagem – o corpo do avião) – todos outros aviões tinham montante – e o nosso Ipanema era igual. Eu me lembro da alegria do Guido Pessotti, engenheiro aeronáutico diretor técnico da Embraer e responsável pelo desenvolvimento do avião agrícola brasileiro, quando viu a imagem em tamanho real da aeronave no simpósio e percebeu que era igual ao nosso Ipanema sem montante, motivo pelo qual havia sido muito criticado. Visitamos a Cessna em Wichita (Kansas), a Grumman (Aeroespace Corporation) em Elmira (Nova York), onde a Schweizer Aircraft fabricava o Ag Cat. No final, o Ipanema puxou o motor Lycoming.
O senhor chegou a assistir ao primeiro voo do Ipanema?
Sim. Foi lá em São José dos Campos (São Paulo) e estava muito bacana toda a coisa.
Durante a sua gestão como delegado do Ministério da Agricultura no Rio Grande do Sul, como foi a sua aproximação com o setor aeroagrícola?
Eu fiquei quase 15 anos como delegado do Ministério da Agricultura no Rio Grande do Sul. Foram 12 anos e uns quebrados na primeira gestão. E eu aproveitei o cargo para ajudar a promover a aviação agrícola. Eu lembro que na posse da minha segunda gestão, a turma da aviação agrícola estava toda lá me prestigiando. Em meu discurso, deixei eles para o final e disse: – para a turma da aviação agrícola, estou vindo com o motor turbo para ajudar vocês. Naquela época, não existia aeronave turbo aqui no Brasil, recém-estava sendo lançada nos Estados Unidos. Isto é, como delegado, podia dar entrevistas e me ouviam muito por eu ser assessor nomeado de dois ministros da Agricultura – o Ângelo Amaury Stábile (15/08/1979 a 02/03/1984) e o Nestor Jost (02/03/1984 a 14/03/1985). Lá em Brasília, nós tínhamos o Hiroshi Takano, que era o coordenador nacional de aviação agrícola, e ele me convidava para participar de tudo. Eu circulava por esse Brasil inteiro, graças a Deus, fazendo palestras e dando aulas.
Nessa época, havia alguma política governamental para desenvolver a viação agrícola?
A política de desenvolvimento da aviação agrícola foi traçada praticamente pelo Decreto-lei 917 de 7 de outubro de 1969, que eu ajudei a redigir. O decreto diz, praticamente, que: ao Ministério da Agricultura compete promover o desenvolvimento da aviação agrícola nos seguintes termos: Governo faz pesquisa; desenvolve técnicas, promove e trabalha suplementarmente quando não tiver avião, em caso de moléstia, tal e tal. Então, o Ministério só podia entrar com os aviões quando não tivesse avião na área. Isso nós estendemos aos governos estaduais, porque eu vinha do Rio Grande do Sul, e sabia que a Secretaria da Agricultura do Estado tinha um Cessna AgWagon agrícola que trabalhava principalmente na área de arroz, concorrendo com a iniciativa privada, colocando o preço lá embaixo. Isso era um absurdo. Quem vai querer comprar um avião, se tem um governo oferecendo a ferramenta a preços menores? Então nós colocamos no decreto-lei o que competia ao governo. Mas esse AgWagon, da Secretária da Agricultura, eu consegui pregar ele no chão no tempo do secretário da Agricultura, Getúlio Marcantônio, que era meu amigo. Um belo dia eu cheguei para o Getúlio e disse que o avião estava concorrendo com a iniciativa privada, conforme o decreto-lei 917. Orientei: – você tem que pegar esse avião e trabalhar em pesquisa, vai ser uma maravilha. Trabalhar em treinamento. Aí, ele determinou que o avião nunca mais saísse do chão para fazer trabalhos a não ser pesquisa e treinamento. Então, Marcantônio foi o meu braço direito aqui no Rio Grande do Sul para segurar o governo do Estado e essa concorrência. Nós, quando iniciamos com esse decreto, o Brasil tinha 400 aviões, o Rio Grande do Sul tinha 100. Aí, começamos a orientar dentro das diretrizes. Resultado? Nós temos hoje 2 mil e tantos aviões agrícolas (a frota aeroagrícola brasileira possui mais de 2,6 mil aeronaves).
Isso levou o senhor a ser homenageado pelo Sindag?
Por que tu vais homenagear um cara que está fiscalizando o teu trabalho? Pelo seguinte: como eu sou da velha guarda, ajudei a formar a mentalidade do Ministério da Agricultura no sentido de promover a aviação agrícola e treinei dez agrônomos no Rio Grande do Sul – foi o único Estado que fez isso – para orientar os operadores. Fiscalização é orientação: multa só em último caso, quando ficar comprovado que o ato foi contra a lei. Quando eu assumi a coordenação do Rio Grande do Sul, vi barbaridades acontecendo aqui. Em Guaíba, uma fábrica de rações denunciou e um avião agrícola foi multado porque supostamente estava pulverizando agroquímico perto do empreendimento. Então fomos ver o que realmente ocorreu. O avião estava aplicando ureia, respeitando as normas do Ministério da Agricultura. Não tinha nada contra a lei. Então, cortamos essa multa. E assim nós fomos fazendo. Eu coloquei um agrônomo em São Borja, justamente, por isso. Lá, a situação estava em polvorosa. Um veterinário chegou a dar tiro em avião agrícola. Esse veterinário alegava que dois touros seus morreram, porque ocorreu uma deriva sobre o espaço em que os animais estavam. Então, fomos estudar o caso. A conclusão foi que um touro precisava comer dois hectares de pasto contaminado com aquele produto para morrer. Solicitamos a biópsia dos touros. O veterinário tinha queimado os animais e até hoje não se sabe de que os touros morreram. Com a presença do agrônomo, acabou o problema da aviação agrícola em São Borja, naquela época. Assim, nós observamos que com esse tipo de trabalho, orientando, estimulando, fazendo demonstrações, conseguíamos que a aviação agrícola fosse aceita.
O senhor também foi mentor da demonstração de povoamento de lagos com aviões agrícolas?
Em 12 de agosto de 1980, nós fizemos uma demonstração em Guaíba que foi um espetáculo. O ambiente aqui no Rio Grande do Sul estava totalmente dirigido contra a aviação agrícola. Deputados achando que ser contra o uso da ferramenta dava Ibope. Então, nós fizemos essa demonstração de peixamento aéreo na estância de um colega meu, o agrônomo Lauro Jardim (já falecido), onde tinha pista para aeronaves. Para isso, eu precisava de um avião novo, para evitar o risco de uma contaminação que pudesse matar os peixes. Acontece que liguei para o diretor técnico da Embraer na época, mas ele não quis emprestar a aeronave. Aí, eu fui na Aeromot (Aeronaves e Motores), os proprietários, Cláudio Barreto Viana e João Cláudio Jotz, meus amigos desde as campanhas contra a brusone do arroz e a lagarta do trigo, conseguiram me emprestar uma. Pegamos um piloto agrícola, o (Vitor Hugo) Nitz, para fazer o primeiro peixamento aéreo no País. Tudo certinho, beleza. No outro dia, saiu nos jornais, passou na televisão e uma repórter falou que estávamos largando inseticida, poluindo o rio, não lembro qual o jornal, ou qual a televisão. Aí vieram para mim. E eu disse: – largando vida, a aviação agrícola, ali, estava largando peixes, povoando o lago. Um trabalho enorme que a aviação agrícola fez, e essa moça vai me dizer que nós estávamos largando veneno.
Com isso, pararam os ataques contra o uso da ferramenta?
Não. Continuava o movimento contra a aviação agrícola. Estava programada uma reunião promovida pela Secretaria da Saúde, com todo esse pessoal do Meio Ambiente, que estavam atacando a aviação agrícola. No Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAF) do Governo do Estado, todo mundo “armado” contra a gente, aí me passaram a palavra. Eu digo: – Aqui no Rio Grande do Sul tem cem aviões, todos eles pertencentes a empresas, talvez algum particular, mas a maioria deles com equipe treinada pelo Ministério da Agricultura – agrônomo, piloto agrícola e técnico agrícola formados. Os operadores levam multas se não estiverem com essa equipe. Então, teoricamente, um grande percentual do trabalho deles é de acerto. A agricultura precisa deles. (…) Vocês estão falando mal da aviação, dos cem aviões agrícolas. E mais, ainda, e os inseticidas, os domissanitários, que aparecem nas propagandas de televisão com a mãe colocando o aerossol no quarto do bebê. Quantos milhões de aerossóis com veneno ali para matar o mosquito e vocês não dão bola porque não voa, não dá ibope. No outro dia, manchetes e reportagens saíram a favor da aviação agrícola. Depois que houve a fala do Ministério da Agricultura, mudou o rumo.
Teve a história do voo noturno?
Isso aí foi o meu xodó. Quando eu fui homenageado pelo Sindag, em Cachoeira do Sul (RS), em 1988, eu já estava aposentado, aí chega o Eduardo Araújo7, meu grande amigo, que sabia da minha luta para conseguir aprovar o voo noturno agrícola, e diz: “– Cleber, tu foste vitorioso. Saiu a normativa.” Claro que a Aeronáutica colocou uma série de requisitos, mas já tinha sido aberto aquele grande fechamento que existia.
(7)Eduardo Cordeiro de Araújo foi um dos pioneiros da aviação agrícola, tendo participado do início da organização do setor. Ele conta sua história na Revista Aviação Agrícola julho/setembro-2021 (revistaavag.org.br)
Como começou essa história?
Para vocês terem uma ideia, eu fiz o trabalho da aviação agrícola noturna, baseado na necessidade que eu senti quando trabalhei no combate à brusone do arroz em Palmares do Sul (município do Litoral Norte do Rio Grande do Sul). Era uma ventania tremenda. Os períodos bons para aplicação aérea eram manhã, até as 9h30/10 horas, aí pesava o vento e tinha que suspender o voo, e de tardezinha, 17h30/18 horas, quando parava o vento e aí a gente trabalhava até escurecer. E a brusone comendo o arroz. Lembrei que existia o voo noturno. Quando eu estive em Las Vegas com o Marcos Vilela e o Guido Pessotti, aquela turma dos anos 1970, eles passaram um filme mostrando os testes de voo noturno na agricultura. E aqui no Brasil nós tínhamos feito já dois trabalhos. Tinha o Nestor (Diaz) Quijano, dono da Pulverização Aérea Noturna, lá de Ijuí, que já tinha trabalhado na Guatemala com o Grumman Ag Cat. Quijano fez duas demonstrações para nós. Eu pedi para ele mandar por escrito o protocolo da operação. Em cima disso, fiz um trabalho formal e mandei para o Ministro da Agricultura. Disse a ele que temos aqui, no País, zonas de calor tremendo, que pelo menos na minha época, fazia a atmosfera ficar como um mar revolto, capaz de derrubar avião. A Aeronáutica não deu a mínima. Eu me lembro que numa Fenaero (Feira Internacional da Aviação Agrícola, em Canela, no Rio Grande do Sul, em 1989), eu fui recepcionar o brigadeiro que vinha representando o Ministro da Aeronáutica, o brigadeiro chegando, e o coronel, que trabalhava conosco, diz: – brigadeiro, esse aí que é o doutor Cleber do voo noturno. O brigadeiro olhou para mim e disse assim: – está ficando louco? O que é isso? Eu nunca me esqueço. Os caras não queriam que eu colocasse voo noturno no roteiro da palestra que eu ia fazer. Eu sugeri Novidades da viação agrícola, mas na hora de eu falar: – é voo noturno na agricultura mesmo (risos).
Como foi que o voo agrícola noturno acabou sendo normatizado?
Passou-se tempos e tempos, um belo dia, o ministro da Agricultura Sinval Guazelli (26/01/1994 a 1/01/1995), me chama em Brasília. Eu já não era delegado do Ministério, estava só na aviação agrícola, mas nos entrosamos muito bem quando ele era governador (Guazelli governou o Rio Grande do Sul em dois períodos 1975/1979 e 1990/1991) e eu delegado do Ministério da Agricultura. Argumentei que a aviação agrícola precisava da regularização do voo noturno, informei que o pedido já estava no Ministério da Aeronáutica. Aí ele disse: “– fala o meu nome na Aeronáutica“. Não tenha dúvidas. Eu saí dali do gabinete do Guazelli, primeiro liguei para o DAC (Departamento de Aviação Civil, que deu lugar à Anac – Agência Nacional de Aviação Civil). Dois ou três dias depois, houve a comunicação. Duas semanas depois, chamaram eu e o Hiroshi Takano ao Rio de Janeiro para uma reunião sobre o voo noturno na aviação agrícola. Antes de viajar, liguei para o Marcos Vilela, que estava trabalhando em um Estado americano onde só se voava à noite por causa do calor. Ele me mandou a técnica de aplicação noturna por escrito. Eu peguei aquilo e fui para o Rio de Janeiro e entreguei para os militares: – está aqui a tecnologia. Depois de aprovada a norma, eu recebi telefonemas de aplicadores aéreos de outros Estados perguntando como fazia para voar à noite. Mas eu já estava aposentado.
Essas experiências em campo que levaram à regulamentação do setor?
A regulamentação ela é mais política. O que orientou mesmo a normatização do setor foram os cursos para formar pilotos, para agrônomos e técnico executores.
Por que o Rio Grande do Sul, São Paulo e Paraná estavam no centro desse processo de alavancagem da aviação agrícola?
Porque a agricultura era forte e pujante nesses estados, e o agricultor começou a sentir a necessidade de usar aviões agrícolas nas suas lavouras. E os pilotos começaram a formar empresas, mesmo quem não era piloto e tinha recurso montou empresa.
E a delegacia do Mapa no Rio Grande do Sul, andei lendo, serviu de modelo para outros Estados?
Serviu e principalmente na área de fiscalização da aviação agrícola. O que fazíamos aqui era copiado nos outros Estados. Eles não tinham equipes como nós tínhamos, eram um ou dois agrônomos em cada Estado. Como vim da ETEAV, cheguei imbuído daquela mentalidade de promover mesmo. E como é que eu vou promover? Eu tenho que fiscalizar, eu tenho que orientar. Então, para isso, eu tenho que colocar colegas meus treinados.
Mas eram funcionários do Ministério?
Sim. Nós pegamos os agrônomos do quadro do Mapa e treinamos em aviação agrícola. Eu acredito que isso tenha sido o motivo do sucesso da Delegacia Federal de Agricultura do Rio Grande do Sul.
E como é para o senhor, que fez parte da história da aviação agrícola, esses projetos de proibição que estão pipocando em várias partes do País?
Eu tiro o chapéu para o Sindag. Eu tenho acompanhado pela imprensa como o Sindag está enfrentando tudo isso. Nossa, eu, que sou da família da aviação agrícola, me impressionei. No início, o Sindag não era tão forte assim. Agora, o combate ao mosquito é uma grande oportunidade para a aviação agrícola. Porque quando eu trabalhava na aviação agrícola em Brasília, 1989, com a ETEAV, nós nos comunicamos com uma empresa que vivia só de combate aos mosquitos, a Mosquito Controll, que existe até hoje. Na época, tinha 15 aeronaves e trabalhava só com Pawnee. Perguntei coisas técnicas, queria saber qual o produto, qual a dosagem? E me mandaram tudo. Era um produto que apresentava o mínimo de toxidade aos seres humanos. Eles aplicavam à noite. Um sucesso enorme. O único problema é que manchava os carros, então tinha que recolher ou tapar os automóveis. Imagina, isso foi em 1969, nós estamos em 2024, certo? E, bobeando. O setor, que é pujante na hora de atacar os incêndios e os gafanhotos, agora, está parado.
Como o senhor acha que o Ministério da Agricultura poderia ser mais efetivo para esclarecer o contrassenso dos projetos de proibição?
Sinceramente? Eu acho que falta no Ministério da Agricultura alguém com voz forte e que conheça o setor. Isso é importante. Eu me lembro que quando foi criada a Divisão de Aviação Agrícola (Diav), queriam enquadrá-la no setor de mecanização agrícola. Eu fui contra. – Tem que ser ligado direto ao Gabinete do Ministro para ter força, para ter voz. Nós criamos em Brasília a Câmara Nacional de Aviação Agrícola, assim como tem a Câmara do Feijão, Câmara do Trigo, entre outras, no tempo do ministro Guazelli. Eu indiquei o presidente do Sindag na época, o Euclides de Carli, e fiquei como vice.
E como é que o senhor avalia que o setor agrícola poderia enfrentar esses ataques de agora?
Olha, eu acho que o exemplo dado no passado serve ainda. Se fortalecer, entrar com técnica. Na época, eu tinha até o Ministério da Aeronáutica de aliado. Basta dizer que o Ministério da Aeronáutica, junto com o Ministério da Agricultura, iniciou a tecnificação da aviação agrícola no País.
E na sua visão, qual é o futuro da criação agrícola? Para onde ela caminha?
Eu acho que o futuro da avaliação agrícola é formidável. A gente vê hoje em dia a importação, principalmente, de aviões de grande porte. Nós temos lavouras imensas no Brasil central, ali eles estão trabalhando só com turbo. Eu estou impressionado com o crescimento do avião de grande porte.